sexta-feira, setembro 29, 2006

quinta-feira, setembro 28, 2006

Bom Dia Brasil - rede globo

No programa Bom Dia Brasil, da Globo, a cada dia, entrevistam um candidato
à Presidência da República.
Tenho visto todos e hoje foi a vez do Lula.
Para quem não viu, os entrevistadores eram Alexandre Garcia, Mirian Leitão,
Renato Machado e Renata Vasconcelos.

Durante 20 minutos bombardearam o Lula sobre o dossiê e o Lula foi
respondendo, dizendo sempre que quer a apuração real e total dos fatos e
que nunca fez nem fará uso dessa execrável prática. Relembrou o dossiê
preparado contra ele, Lula, pelo Collor etc. E afirmou que recusou usar
dossiês, como o do escândalo das Ilhas Caimãs, que seria contra o FHC e sua
turma.

Fico imaginando os jornalistas combinando como fariam as perguntas.
O primeiro acerto deles, com certeza, é chamar o Lula de candidato, e não
de presidente. E assim foi feito. Todas as perguntas começavam sempre:
"Candidato, como o senhor explica a origem do dinheiro desse dossiê....
Candidato, por que o delegado não deixou filmar o dinheiro apreendido..."
Claro, a esta última o Lula, ironicamente, respondeu ao "ilustre
jornalista": "Ora, pergunte ao delegado. Eu sou o presidente da República.

Agora, vem a melhor. Ao final, o aviso que o tempo de 20 minutos havia
terminado e que ele tinha apenas 30 segundos de tolerância para se
despedir.
Ao que o Lula respondeu: "Ora, eu não usei meu tempo ainda. Fui convidado
para responder sobre meu programa de Governo e nada me foi perguntado sobre
isso" Fecham-se os panos!

Se as câmeras ainda pudessem focar as caras dos quatro notáveis jornalistas
se veria a cara de tacho dos mesmos. Como dizia minha saudosa vó: "Tomou,
papudo!"

Para os demais candidatos entrevistados antes no programa os tais
jornalistas perguntaram sempre sobre o programa de governo. E ao Lula,
apesar de só o tratarem de candidato, não fizeram UMA ÚNICA pergunta sobre
programa de Governo. Que triste!

Como jornalista, confesso que fiquei envergonhado. Mas, como brasileiro e
cidadão, como alguém que aos 18 anos tinha apenas a 4ª série do antigo
primário, senti um tremendo orgulho. Nem sempre quem tem estudos e fala
bonito, faz bonito.

Depois dessa, sinceramente, se eu fosse o Cristovam, o Alckmin ou Heloisa
Helena, votava no Lula.

É a Globo fazendo lavegem cerebral nos brasileiros. É Ela a única
interessada na eleição do tucano para ser beneficiada com a política dos
burgueses.

VIVA LULA E O POVO BRASILEIRO.

quarta-feira, setembro 27, 2006

Primeiro de Outubro

Meus amigos,

Não entremos em detalhes sobre o Lula, se ele merece ou não merece ganhar
as eleições; se ele sabia ou não sabia..., enfim, se ele sim ou não, todas
as mazelas que vocês já estão cansados de ouvir todos os dias.

Também não citemos aqueles outros candidatos que nem conseguem situar-se
nas pesquisas..., ah! essas pesquisas... Como é mesmo o nome deles?

Fiquemos apenas nestes três oponentes de Lula: Alkimin, Heloisa Helena e
Cristovam Buarque, pela ordem.

Eles foram incompetentes. Já começaram a campanha errando, ou seja, com a
meta equivocada: tirar os votos de Lula.

Nenhum dos três chegou ou se apresentou para ser Presidente do Brasil.
Todos três chegaram para, esculhambando com o Lula, arriscar a sentar na
cadeira número um do Brasil.

O eleitor, como telespectador de qualquer novela com trama boa, começou a
identificar-se com o injuriado, com aquele que só era atacado e levava as
pancadas..., e Lula, que já tinha a preferência percentual, consolidou-se
mais ainda com o sentimento de solidarização.

Por isso, não conseguem os das Oposições, diminuir os votos de Lula.

O tira-tira está aqui embaixo, entre Alkimin, Heloisa Helena, Cristovam
Buarque e os Indecisos e/ou descrentes demais.

Heloisa Helena, a cada dia que xinga o Lula, torna-se mais antipática aos
próprios simpatizantes, pois ninguém gosta de pessoas que ficam a soltar
impropérios carregados de ódio contra ninguém. Isso cheira a doença, como
aquela que o Inspetor Clouseau (Peter Sellers) acabou por produzir no
próprio chefe dele, o também Inspetor Dreyfus (Herbert lom), que acabou
cheio de neuroses e tiques nervosos. Lembram da Pantera Cor de Rosa? Por
isso, Alkimin e Cristovam Buarque vêm crescendo e ela caindo.

Cristovam Buarque é o homem de um discurso apenas. É o intelectual que
pensa ter criado palavras de impacto, e preso a elas, fica que nem disco
arranhado, saltando na mesma mensagem como cuco ao dar as horas. Por isso
oscila entre 1% e 1%. A própria oscilação reflete a repetitividade do
candidato. Cristovam Buarque me lembra bastante quando eu comecei a dar com
os burros n'água, logo no início quando procurava apoio e conselhos destes
especialistas das Emdagro, Embrapa etc., que, sem verbas, ficam malucos
quando um desavisado resolve aplicar os parcos recursos na pobre terrinha
que deu duro para conseguir. São ótimos no papel; umas porcarias lá no
campo.

Alkimin, ah! o Alkimin..., nem ele mesmo acredita nele, pois utiliza-se de
dois artifícios bobos para disfarçar o que ele pensa que é defeito: um é o
que os norte-americanos chamam de "combo", aquela puxada daquele cabelo que
ainda nasce lá perto da nuca ou próximo das orelhas, que grudado com alguma
meleca própria, no topo da careca, ajuda a disfarçar o penteado; o outro
artifício é o de constantemente ter que apertar os lábios um contra o
outro, aumentando assim a circulação, fazendo-os parecerem maiores do que
são. Enfim, creio que ele não se gosta, quando tem que se olhar no espelho.

Enquanto Lula expressa-se no futuro baseado no presente, Alkimin é
nostálgico e prende-se ao passado de tudo aquilo que ele fez em São Paulo,
e que ninguém acredita que foi ele mesmo quem fez, ou se de fato funciona.
Exemplo de segurança do paulistano foram os ataques do PCC..., ops!!!,
esqueci que isso teria sido obra do PT. Outra coisa que Alkimin julga
importantíssimo, são as promessas que Lula não conseguiu cumprir; Lula
teria que ser um ditador, convenhamos nós à luz da razão.

Enquanto Lula discursou e vem discursando para os necessitados, para os não
necessitados, para os ávidos de vida, para os que pouco se importam, para
os brasileiros enfim, não importa se as mensagens são, foram ou não foram
verdadeiras, se o que ele diz é programa ou não é programa, ele abordou a
campanha com objetivo, com positivismo. Ele não chegou questionando, mas
dizendo tudo o que é necessário ser realizado no Brasil.

Alkimin, Heloisa Helena e Cristovam Buarque não estão preocupados com o
Brasil e os brasileiros; eles estão espumando para derrubar o Lula.

Heloisa Helena e Cristovam Buarque teriam ganho muito mais, se tivessem
atacado o Alkimin, para depois..., quem sabe..., num segundo turno atacarem
o Lula. Pecaram no mais elementar processo de persuasão: tentaram impor a
imagem que eles criaram do Lula, esquecendo da objetividade, da vontade
própria que cada olho do eleitor tem, que tende a relativar todas as
coisas, ajudado pelas comparações entre dois sistemas corruptos, entre duas
forças matreiras, entre dois campos parecidos.

Não importa em quem eu vou votar, e nem importa quem ganhará a eleição. O
que importa é que os três foram incompetentes, talvez por não se firmarem
bem plantados nas próprias mentiras, nas próprias falsidades, que o eleitor
sabe captar pela falta de contundência e ardor nas falas destes três
candidatos.

Nenhum dos três acreditou firmemente no que disseram e continuam dizendo ao
eleitorado.

Por isso, não merecem ganhar... São falsos profetas; são falsos gurus; são
falsos líderes; são péssimos atores que, diante do esquecimento da fala,
não sabem improvisar.

Aos Senhores e Senhoras, pagantes do presente espetáculo, os aplausos
sinceros para quem se apresenta melhor.

Boblitz

terça-feira, setembro 26, 2006

IDIOTA (autor desconhecido)

IDIOTA (autor desconhecido)

Conta-se que numa pequena cidade do interior um grupo de pessoas se divertia com o idiota da aldeia. Um pobre coitado "de pouca inteligência", que vivia de pequenos biscates e esmolas.
Diariamente eles chamavam o bobo ao bar onde se reuniam e ofereciam a ele a
escolha entre duas moedas - uma grande de 400 réis e outra menor, de dois mil réis. Ele sempre escolhia a maior e menos valiosa, o que era motivo de risos para todos. Certo dia, um dos membros do grupo chamou-o e lhe perguntou se ainda não havia percebido que a moeda maior valia menos... "Eu sei" - respondeu o não tão tolo assim - "ela vale cinco vezes menos, mas no dia que eu escolher a outra, a brincadeira acaba e não vou mais ganhar minha moeda." Pode-se tirar várias conclusões dessa pequena narrativa.
1) A primeira: quem parece idiota, nem sempre o é.
2) Dito em forma de pergunta: quais eram os verdadeiros tolos da história?
3) Outra: se você for ganancioso, acaba estragando sua fonte de renda.
4) Mas a conclusão mais interessante, a meu ver, é a percepção de que podemos estar bem, mesmo quando os outros não têm uma boa opinião a nosso respeito.
5) Portanto, o que importa não é o que pensam de nós, mas o que realmente somos.


"O maior prazer de um homem inteligente é bancar o idiota diante de um idiota que banca o inteligente."

segunda-feira, setembro 25, 2006

FHC E AS ESCOLAS TÉCNICAS

FHC E AS ESCOLAS TÉCNICAS
Luiz Augusto Caldas, Joaquim Rufino Neto e Genival Alves Azeredo,
Clipping Educacional de 20.09.2006






O descaso com as escolas técnicas federais era tal que, de 1995 a 1998,
não foi autorizada a contratação de um único docente ou técnico.

COMO PRESIDENTES dos conselhos que congregam as instituições da Rede
Federal de Educação Profissional e Tecnológica (centros tecnológicos,
escolas técnicas, escolas agrotécnicas e colégios técnicos -Concefet,
Coneaf e Condetuf), não poderíamos, incitados pelo artigo do ex-ministro
da Educação Paulo Renato Souza ("Tendências/Debates", dia 15/9), deixar de
pontuar as enormes diferenças entre os governos FHC e Lula quanto à
educação profissional. O governo anterior, ao contrário do que afirma o
ex-ministro, aprovou a lei nº 9.649/98, que proibia a expansão do sistema
federal de educação profissional. Diz seu art. 47, parágrafo quinto: "A
expansão da oferta de educação profissional, mediante a criação de novas
unidades de ensino por parte da União, somente poderá ocorrer em parceria
com Estados, municípios, Distrito Federal, setor produtivo ou organizações
não-governamentais, que serão responsáveis pela manutenção e gestão dos
estabelecimentos de ensino".

A presença do advérbio "somente" não deixa dúvidas. A União até poderia
custear a construção de novos estabelecimentos, mas custeio e pessoal não
mais seriam da sua responsabilidade. Em outras palavras, a nova escola não
seria federal, mas estadual, municipal ou privada. Os congressistas
tentaram aprovar um parágrafo 6º que relativizava a regra geral: "Às
unidades de ensino da União com obras já concluídas não se aplica o
disposto no parágrafo anterior". FHC alegou falta de recursos para a
educação e vetou o dispositivo. O descaso com as escolas técnicas federais
era tal que, de 1995 a 1998, não foi autorizada a contratação de um único
docente ou técnico para o sistema de 140 escolas. Em 1998, o orçamento do
sistema atingiu o fundo do poço: R$ 856 milhões, a valor presente. A
título de comparação, o atual governo autorizou, de 2003 a 2006, a
contratação de 3.433 docentes e técnicos, e o orçamento do sistema, em
2005, atingiu R$ 1,2 bilhão.

O ex-ministro alega que a medida se justificava pelo fato de as escolas
federais serem burocraticamente vinculadas a Brasília. Elas não dariam
conta do dinamismo do mercado de trabalho local. Ora, desmentem o
ex-ministro a altíssima demanda pelas vagas dessas escolas e o desempenho
dos alunos a cada edição do Enem. Por miopia, FHC autorizou o
funcionamento de apenas dez escolas técnicas federais em oito anos (cinco
sem quadro de pessoal), enquanto Lula encerra o primeiro mandato
autorizando 32 (além de 18 escolas privadas federalizadas). Mas isso não é
tudo. FHC, pelo decreto nº 2.208/97, proibiu a oferta de ensino médio
integrado à educação profissional. Seu ministro, pela portaria nº 646/97,
fixou metas para diminuição da oferta de ensino médio pelas escolas
técnicas federais. Hoje, estamos colhendo os frutos desses equívocos,
sobretudo São Paulo. Por razões de identidade ideológica, o Estado adotou
essa visão de maneira mais determinada. Resultado: entre 2003 e 2004, o
ensino médio perdeu 137 mil matrículas no país, das quais 131 mil em São
Paulo -96% do total.

O atual governo não só revogou essas medidas absurdas mas também tem
promovido a integração do ensino médio com a educação profissional,
sobretudo na modalidade de educação de jovens e adultos (Projovem e
Proeja), para tentar resgatar o interesse do jovem pela escola. Decerto, o
governo anterior lançou o Proep (convênios com Estados e setor privado
para construção de escolas técnicas), mas até nisso ele perde na
comparação com o governo atual. O programa previa a construção de 65
escolas técnicas privadas e 49 estaduais. Os números revelam um viés
privatista. Mas, ao tomar as transferências financeiras efetivamente
realizadas, pode-se notar que, até 2002, o governo anterior transferiu R$
76,1 milhões para o setor privado e apenas R$ 28,9 milhões para o setor
público estadual. Isso significa que, no Proep, investiu R$ 105 milhões. O
governo atual, para a conclusão desses convênios, está investindo R$ 172
milhões. Mesmo considerados todos os outros convênios ativos ou
finalizados, incluindo ampliação, reforma e equipamento (265 no total), o
governo anterior terá bancado 43,5% do programa, contra 46,5% do atual.
Isso explica, inclusive, o cancelamento de outros 80 convênios.

Assinados em 2002, no apagar das luzes da era FHC, não havia nenhum
critério técnico que amparasse sua continuidade. Somando R$ 183,5 milhões,
o governo anterior só havia repassado para eles R$ 3,5 milhões (1,9%).
Ainda bem. LUIZ AUGUSTO CALDAS, 44, é presidente do Concefet (Conselho dos
Dirigentes dos Centros Federais de Educação Tecnológica). JOAQUIM RUFINO
NETO, 48, é presidente do Coneaf (Conselho dos Diretores das Escolas
Agrotécnicas Federais). GENIVAL ALVES DE AZEREDO, 52, é presidente do
Condetuf (Conselho dos Diretores das Escolas Técnicas vinculadas às
Universidades Federais)

sexta-feira, setembro 22, 2006

Mauricio Dias para a Carta Capital- GOVERNO LULA

Entrevista: Maria da Conceição Tavares
Sem o garrote do FMI

Mauricio Dias para a Carta Capital
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Impulsiva, vibrante, ágil no raciocínio. Maria da Conceição Tavares fala
aos jorros sem perder a coerência, o brilho e a coragem como se verá nesta
entrevista a CartaCapital, na qual ela defende as ações de Lula com
emoção, mas, também, com uma qualidade de argumentação incomum em muitos
integrantes do governo.

Um dos pontos que afirma é o de que o governo Lula não repete a política
econômica de Fernando Henrique Cardoso. Ela dá uma importância fundamental
a uma diferença: o pagamento de US$ 15 bilhões ao Fundo Monetário
Internacional. Isso teria livrado o País, pelos próximos dez anos, do
garrote internacional.

Ela mostra outros pontos de divergência. Lembra, por exemplo, que Lula
barrou o andamento do neoliberalismo, estancou as privatizações,
reestrutura o Estado brasileiro e não vocaliza a política de Washington.
Satisfeita com muitas das ações do governo em defesa da população “de
baixo”, no entanto, reclama: “Não é o governo dos nossos sonhos”.

Aos 75 anos ela, não desanima e nem vacila quando pensa na eleição de
2006: “Espero que não ganhe a visão dos tucanos neoliberais. Tudo, com
eles, regredirá. Esse capitalismo que pregam é violentamente regressivo
tanto nas relações com o trabalho, quanto na relação do Estado com o
capital e com a cidadania. Eles só querem apagar direitos. Se possível,
todos aqueles conquistados no século XX”.

Nem a ditadura militar tentou fazer isso. Mas ela não duvida que os
economistas tucanos façam, pois já pregam as reformas de segunda geração.
Por isso, ela se põe a favor da reeleição de Lula. Quer que ele mesmo
“impeça o desmonte do que já conseguiu conquistar”. Abaixo os trechos
principais da entrevista.

CartaCapital: O governo fechará o ano com a antecipação do pagamento de
US$ 15 bilhões ao FMI. Por que os brasileiros, além dos economistas, devem
comemorar esse resultado?

Maria da Conceição Tavares: Ao pagarmos o Fundo Monetário chegaremos a uma
relação “dívida externa e PIB” que, finalmente, apagou o que o governo do
Fernando Henrique fez. Isso é espantoso: é a melhor relação dívida externa
versus Produto Interno Bruto dos últimos 40 ou 50 anos. Conseguimos sair
do atoleiro, da fragilidade da crise cambial. Ou seja, crise cambial mata.
A crise fiscal, no entanto, esfola.

CC: Quem é esfolado no momento?

MCT: No momento a crise fiscal está esfolando o povo, a classe média e os
construtores.

CC: E os juros? Por que está todo mundo indignado com a taxa?

MCT: Tem muita gente ganhando com a taxa alta. As grandes empresas
protegem-se com aplicações financeiras.

CC: Então, por que a reclamação?

MCT: Porque não há investimento público. Isso quer dizer que vários dos
grupos tradicionais de poder não levam nada. A classe média não leva nada.
Quem tem levado é o pessoal “de baixo”. Mesmo em 2003, o ano de
crescimento zero, tivemos um aumento do mínimo acima do PIB per capita. Em
2004, aconteceu o mesmo e esse ano também. Seguramente, em 2006 será
assim. É a primeira vez que, de uma maneira contínua, um governo sobe o
salário mínimo com regras. Regras a favor do mínimo. É a primeira vez,
também, que se faz um esforço de formalização do mercado de trabalho,
depois de mais uma década de informalização, terceirização etc. Há três
boas notícias trazidas pela PNAD: a reversão do salário dos “de baixo”; a
reversão do desemprego e da renda também dos “de baixo”.

CC: À custa dos ricos, acusam...

MCT: Os ricos somos nós, a classe média. À custa da classe média que,
aliás, mantinha uma frente grande dos salários menores. Em resumo, é a
distribuição melhor dos salários, que no Brasil ainda é pérfida. Então,
agora, pagou a turma de cima. E reclamam que o emprego gerado foi para os
“de baixo” e não para os filhos da classe média alta. Alguém esperava que
o governo Lula fosse gerar prioritariamente emprego para o pessoal da
classe média alta dos Jardins, em São Paulo? Estão brincando, não? Os “de
baixo” nunca levaram colher de chá. Os empregos de agora foram gerados
para assalariados que ganham em torno de um salário mínimo ou que têm o
salário mínimo como referência. Isso é fundamental para melhorar a
pirâmide dos salários. Isso foi prometido e feito sem nenhum entendimento
das autoridades econômicas.

CC: Como assim?

MCT: Eles atiram no que vêem e acertam o que não vêem. Porque,
evidentemente, aqueles meninos do Banco Central continuam com aquele
modelito ridículo que todo mundo já criticou. Por que é que não se
perguntou, na prática, para o que é que serviu essa taxa de câmbio
valorizado.

CC: Há quem acredite que se trata de populismo cambial.

MCT: Mentira.

CC: Qual a diferença do que foi feito no governo FHC?

MCT: Aquele era populismo cambial porque com aquele câmbio ele conseguia
dar uma cesta mais barata. Arrebentou, por isso, com a agricultura de
exportação, arrebentou com a indústria. Enfim, arrebentou com a estrutura
produtiva. E nos pespegou uma dívida interna e externa numa rapidez
colossal. Estourou os endividamentos interno e externo. E tudo o que ele
trazia de capital para fechar o balanço de pagamentos era para importar
bens de consumo. Foi aquele delírio de consumo. Aquilo era populismo.

CC: Um populismo que a classe média adorava...

MCT: Exatamente. Para a classe média. Até que teve de reverter e fazer a
desvalorização. E nos deixou quebrados. Sabe qual era a relação “dívida
externa e exportações”? Era três vezes maior. Hoje é só 1,1 vez maior.
Sabe qual era quando nós quebramos em 1999? Era de 3,97%. Isso é
praticamente 4%. Com essa relação, os países quebram. Só se tem reserva,
de fato, quando se diminui o endividamento. Reserva com endividamento
crescente, como no governo FHC, não quer dizer nada. Agora, sim. Olha como
os governos não se parecem, ao contrário do que alguns dizem por aí. Há,
hoje, reservas internacionais líquidas de US$ 52 bilhões. Há uma queda na
dívida externa, pública e privada, enorme.

CC: No capítulo de investimento público a coisa parece muito igual.

MCT: Agora também é quase nada. O arrocho fiscal de agora é mais violento
do que antes. Isso ocorre porque a taxa de juros está lá em cima. Não ao
ponto que o governo FHC tinha elevado. Dever ao Fundo, como se devia, é
uma desgraça. Agora pagamos e há reservas de US$ 52 bilhões e uma dívida
externa reduzida em mais de 40%. Há uma política conseqüente. Resolvida
essa dívida de curto prazo, a estrutura da dívida externa está
perfeitamente “o.k.” para os próximos dez anos.

CC: Por que não “batem lata” para isso? Esqueceram a dívida externa?

MCT: Porque não têm sensibilidade. Por que é que em nenhuma ata do Copom
isso está relacionado? Fala-se sempre da inflação. São uns beócios. Agora,
se não baixar os juros eles serão umas toupeiras. Aí o presidente Lula vai
ter de dar uma chicotada. Eles eram dependentes do mercado e agora o
mercado sinalizou.

CC: O mote deles é a inflação...

MCT: Inflação, taxa de juros e câmbio. Não conseguem ver além disso. Mas o
que aconteceu com o endividamento externo? Eu continuo não crendo que esse
modelo não vai fazer bem ao presidente principalmente no ano da eleição.
Não creio. Abriu-se agora um novo período.

CC: A partir do pagamento ao FMI?

MCT: Sim. Isso significa que a restrição externa que vem lá de trás, desde
o começo dos anos 1980, está equacionada. Agora, sim, dá para desmontar
uma das patas da armadilha macroeconômica. Dá para baixar, a sério, a taxa
de juros. Agora, sim, temos condições de retomar o crescimento. Mas, um
pequeno detalhe, como o crescimento até agora era um miniciclo de consumo
e, no caso do governo Lula, miniciclo de consumo e de exportações no ano
passado que soltaram o crédito para o povão...

CC: Mas dizem que o povão estava endividado.

MCT: O povão já estava endividado. Só que na Casas Bahia e, portanto,
pagava um juro indescritível. Hoje ele já pode comprar a televisão, a
geladeira, em módicas prestações com o crédito de outra maneira. O Mário
Henrique Simonsen me contava que cansou de explicar para a mãe dele duas
coisas que ela jamais entendeu: a tal da correção monetária e a porcaria
da taxa de juros. Economista não consegue explicar certas coisas nem para
a própria mãe. Para o povão, quando abaixa a prestação, aumenta o número
delas e ainda pode descontar em folha está ótimo. Nesse sentido, o governo
fez outras coisas, como a Previdência generalizada para os velhinhos.
Altamente distributivo. Para valer. O maior programa distributivo do País
é a Previdência Social dos aposentados que dá uma renda enorme.
Principalmente no Nordeste...

CC: No Nordeste?

MCT: Seguramente. Onde é que deu renda maior nesses programas sociais
todos? No Nordeste. Onde a Bolsa Família é mais importante? No Nordeste.
Onde é que Lula está pensando em retomar os projetos estruturantes? Na
região mais atrasada. No Nordeste. É o caso da ferrovia e da interligação
das bacias que o pessoal fica dizendo que é a transposição do São
Francisco? Não é transposição, é ligação das bacias para que não haja
sobra de água de um lado e seca do outro. Enfim, o de sempre. Espero que
ninguém interrompa esses projetos. Não se pode interromper os projetos
estruturantes e, também, os projetos sul-americanos de integração que Lula
fez graças às boas relações que ele tem tanto com o Kirchner quanto com o
venezuelano (Chávez).

CC: A senhora também cobrava, antes, a retomada do crescimento.

MCT: Cobrava antes porque era miniciclo. Era vôo de galinha. Eu sempre
disse que com aquela política era vôo de galinha. Neste último ano, como
sobrou liquidez no mundo e nós reestruturamos a dívida externa, a coisa
mudou. Mas não se esqueça que eu estou em silêncio há muito. Só falei uma
coisinha aqui e outra ali.

CC: A hora de retomar o crescimento chega no ano eleitoral. Coincidência?

MCT: Não. Azar. Ninguém vai perceber porque isso não é eleitoral. Esse é o
problema. Isto é uma política de reestruturação. Está se reestruturando o
setor público. Pararam as privatizações. Está se tentando reestruturar o
setor elétrico. Tudo isso, com exceção dos programas diretamente
populares, é invisível. Você acha que o povão dá conta do que eu estou
falando?

CC: Qual a importância que a senhora vê no fato de, após tantos anos, a
moeda brasileira, o real, estar cotada na Bloomberg? Por que isso?

MCT: Havia alguma cotação no tempo do “real forte” do governo FHC? Não.
Porque não era forte coisa nenhuma. Tudo o que eu disse sobre aquele plano
que, aliás, me custou bastante pancada dentro do partido... Eu e o
Mercadante levamos muita pancada porque, depois, deu certo... deu certo a
curto prazo. A questão é avaliar a herança pesada que deixou. Estamos
metidos numa herança, essa é a verdadeira “herança maldita”. Por isso, vem
um e diz que está continuando a política do Fernando Henrique. Há até
ministros nossos, de direita, na área econômica, que não entendem nada do
que estão falando, assumiram esse papo. Continuamos nada.

CC: Explique melhor, por favor.

MCT: As razões pelas quais foi necessária essa valorização foi para
comprar reservas baratas, pagar a dívida externa privada, reestruturar a
dívida pública e contratá-la em melhor situação. Em 2004 crescemos,
exportamos como gigantes. O salário cresce, o emprego cresce e não batia
nada com o diagnóstico. Evidente que o PIB caiu por ser um miniciclo.

CC: Mas o PIB caiu. Pode crescer mais em 2006?

MCT: O PIB caiu por ser um miniciclo. Não sei o quanto o PIB pode crescer.
Vamos ver. Pode chegar a 4%. Não é o que a gente quer, mas é que ainda não
estão postas as condições internas de retomada do crescimento. Que é,
basicamente, o investimento público. Para isso é preciso baixar os juros
para que eles não comam o investimento. Não há mais argumento para manter
o câmbio tão valorizado. Diminuímos a dívida interna, dolarizada,
radicalmente. E para manter estável a relação da dívida interna com o PIB
tivemos de mandar o pau no superávit. Foi preciso. Mas tanto eles não
entendem que propuseram aquela estupidez do superávit crescente para 5%
nos próximos dez anos.

CC: Isso aconteceu, então, apesar deles.

MCT: Não é apesar de... Há muitos operadores ainda bons que são do ramo.
Apesar dos ministros, das declarações que dão, dos “Delfins Nettos”. Fico
pasma. Por que se está emitindo títulos em real? É porque todo mundo supõe
que não vai desvalorizar. Ou vai ser desvalorizado de forma
insignificante. Dado, no entanto, que emitimos a juros de 12,5% em dólar.
Isso significa que a taxa não deverá ficar muito abaixo de 14%. Esse é o
problema. Mas ela está em 18%. Portanto, há folga. E essa folga para as
contas públicas é essencial. Veja a contradição: como é que se critica a
política monetária e o juro e, depois, se propõe os 5% permanentes do PIB?
Ora, isso é o que empurra a taxa de juros para o patamar que está. Essa
armadilha tem de ser discutida com toda a seriedade. Incluindo, agora,
essa liberdade adquirida quanto à restrição externa e o que Lula fez para
melhorar a situação dos mais pobres e dos assalariados em torno do mínimo.
É o grosso da população.

CC: A classe média alta está pagando a conta.

MCT: Eles pagaram o pato agora. Achatou-se os de cima e puxou-se os de
baixo. Foi achatado o leque de salários que, no caso brasileiro, é um
escândalo.

CC: Por que chegou a esse ponto?

MCT: Porque deixaram o salário mínimo cair a níveis inacreditáveis. O
doutor Getúlio deve estar se removendo na tumba.

CC: Agora, no entanto, ele deve estar um pouco mais feliz.

MCT: Pelo menos isto. É a primeira vez que os sindicatos dos trabalhadores
conseguem negociações coletivas acima da inflação. Há anos que isso não
acontecia. Estão melhorando as condições do trabalho. Isso é inegável.
Agora vem a ameaça dos homens das Casas das Garças com as reformas de
segunda geração. Que é o Banco Central independente, flexibilização da
legislação trabalhista, a última flexibilização possível para comércio e
movimento de capitais. E, finalmente, retomar as privatizações.

CC: Qual o alvo nas privatizações?

MCT: No primeiro acordo com o Fundo que o Fernando Henrique fez, eu estava
na Câmara, eles queriam privatizar o Banco do Brasil, o BNDES e a Caixa
Econômica. Acha que eles deixaram de querer? Coisa nenhuma. Eles
consideram que esses bancos públicos competem com eles. Quando, na
verdade, os bancos públicos são os que permitem alavancar recursos para
financiar o crescimento. O primeiro requerimento do crescimento
sustentável que era afastar a restrição externa.

CC: É possível, de fato, retomar o crescimento?

MCT: Agora, sim. Essa era a primeira barreira. Mas o governo tem, também,
de continuar puxando a renda dos “de baixo” porque, como ainda está, não
diminuiremos a heterogeneidade social. Nosso quadro exige primeiro emprego
e renda para os “de baixo”. Evidentemente, enquanto isso se faz políticas
sociais compensatórias. A terceira barreira é a falta de investimento
público. Isso só se supera baixando os juros e livrando os bancos públicos
das restrições impostas pelo Banco Central.

CC: A senhora é contra a exposição da divergência entre os ministros?

MCT: Mas como não haver divergência pública se alguns estão se metendo
onde não são chamados? E todos eles vêm argumentar a favor dessa
interferência, todos eles, começando pelos economistas da PUC que se
reúnem na Casa das Garças. Esse Pérsio Arida, essa gente toda, que no
Cruzado tinham boas intenções, depois que viraram banqueiro estão, claro,
com péssimas intenções.

CC: A senhora já pôs as mãos no fogo por alguns deles na época do Cruzado.


MCT: E queimei. Não ponho mais as mãos no fogo por ninguém, como pus para
esses meninos. O Pérsio Arida, o André Lara Resende e o Mendonça de
Barros. No caso do Malan (Pedro) eu queimei as mãos e o coração. Eu
gostava muito dele. Todos viraram banqueiros. Isso faz, evidentemente, que
eles digam o contrário da gente. Estão defendendo os interesses deles ao
contrário da gente, é óbvio.

CC: Mudando de assunto. As exportações vão continuar subindo?

MCT: Vamos continuar subindo, mas, como disse o próprio ministro
Rodrigues, muito mais devagar. Crescemos mais que a economia mundial.
Outra coisa que ninguém se dá conta é a idiotice do primeiro quadriênio do
Fernando Henrique. Ele abriu a economia do ponto de vista micro, estourou
as empresas, e do ponto de vista macro fechou. Não exportávamos nada por
causa da taxa de câmbio populista. Em resumo: o que fizemos nos últimos
dois anos foi recuperar o País da situação que aqueles infelizes montaram
de 1994 em diante. Pelo menos do ponto de vista do comércio exterior,
inserção internacional e dívida externa nós nos recuperamos da monstruosa
trapalhada que foi feita.




O PAÍS

Rio, 20 de julho de 2006
Vaia de 120 mil pessoas, é a maior dada a um político brasileiro.

SÃO PAULO. O ex-prefeito José Serra, candidato do PSDB a governador de São
Paulo, chegou ao velório do ator Raul Cortez por volta da 15h45m e logo
que desceu do carro foi vaiado por uma multidão que se aglomerava na
porta do Teatro Municipal e gritava “fora” , “mentiroso” e "enganador'.
Serra fugiu pelos fundos. Ficou no velório por meia hora.

Hugo Chávez chama George Bush de diabo

Hugo Chávez chama George Bush de diabo





Em evento numa igreja do Harlem, em Manhattan, o presidente da Venezuela, Hugo Chávez,
repetiu nesta quinta-feira - desta vez, de modo velado - o insulto ao presidente George W.
Bush que fizera na quarta-feira, chamando-o repetidas vezes de "diabo". Segundo o canal Fox
News, na igreja batista Monte das Oliveiras, Chávez disse que "às vezes o diabo toma a forma
humana". "Não faço referências pessoais quando falo do diabo, ainda que às vezes ele toma
forma humana, ou de pessoas que atuam como ele", provocou.

O comentário foi recebido com vaias e também aplausos. Parte das pessoas presentes gritou:
"Chávez, Chávez, o povo está com você", quando ele entrou na igreja. Chávez foi ciceroneado
pelo ator Danny Glover, que é ativista em defesa dos direitos dos negros americanos e
opositor de Bush. Glover, que atuou na série cinematográfica "Máquina Mortífera", chamou
Chávez de "visionário". E foi citando um dos ícones do cinema americano que o presidente da
Venezuela soltou mais farpas contra Bush:

"Todo dia eu peço a Deus, o quanto antes melhor, que o povo americano eleja um presidente com
o qual se possa conversar, com o qual se possa trabalhar, com o qual se possa falar cara a
cara como um irmão e que veja o outro como um igual. Não esse cavalheiro que anda como John
Wayne", disparou.

Visitar bairros pobres de Nova York já está virando tradição para Chávez. No ano passado ele
esteve no Bronx, uma das zonas mais violentas da maior cidade americana. Este ano, no Harlem,
o presidente sul-americano anunciou a expansão de um programa de combustível mais barato para
a comunidade carente. Os EUA são os maiores importadores do petróleo venezuelano.

Quem organizou o evento foi a empresa Citgo, de propriedade do governo da Venezuela. Ela tem
sede em Houston, no Texas, e fornece energia subsidiada a famílias de baixa renda em Nova
York, Boston, Chicago e Filadélfia durante os meses de inverno.

Na terça-feira, durante sua intervenção na abertura da 61ª Assembléia Geral da ONU, Chávez
arrancou risos da platéia ao encerrar o seu discurso, dizendo que "há um cheiro de enxofre na
ONU, porque o diabo esteve aqui". O presidente dos EUA havia discursado um dia antes.

O mandatário sul-americano comentou, ainda, que seria preciso chamar um psiquiatra para
analisar o discurso feito por Bush na abertura do evento, na terça-feira. As declarações de
Chávez vem enfurecendo até adversários de Bush. Uma opositora do presidente dos EUA chamou o
líder venezuelano de "assassino".

Da Agência O Globo

sexta-feira, setembro 15, 2006

O plano de Kennedy para desenvolver o Nordeste

O plano de Kennedy para desenvolver o Nordeste
por Vandeck Santiago

A surpreendente história de como, quando e por que a nação mais poderosa do planeta interveio na região mais pobre do hemisfério.

Enquanto Mr. Gordon não vem

A tarefa cumprida neste caderno especial parecia, a princípio, irrealizável como trabalho jornalístico, tamanho o gigantismo de que se revestia. Era preciso localizar e consultar documentos que se encontravam em arquivos dos Estados Unidos. Era preciso localizar e entrevistar personagens que estavam aqui e nos Estados Unidos. Era preciso dar sentido a dezenas de informações dispersas e checar a veracidade delas. Uma lista interminável de "era preciso...". Houve momentos em que se insinuou a opção tentadora de parar tudo, restringir o alcance da reportagem e publicá-la tal como estava. Mas a generosidade de cada um dos entrevistados, abrindo caminhos, e as condições dadas pelo Diario, propiciando o tempo e os recursos necessários, culminaram na conclusão do trabalho - ao fim de uma extenuante jornada de cinco meses de investigação jornalística. Localizamos todas as pessoas que planejávamos entrevistar, aqui e no exterior. A única entrevista não obtida foi a do embaixador dos EUA no Brasil naquela época, Lincoln Gordon. Em gentil contato com a reportagem ele alegou dois motivos para não falar, no momento: primeiro julga que teve uma atuação "apenas periférica" em relação ao Nordeste (há controvérsias, como veremos nas páginas seguintes); segundo, está escrevendo suas memórias e o método que utiliza consiste em ir enfocando cada período histórico sucessivamente. No momento Gordon - que tem 93 anos - está no capítulo 6 (anos 50) Só "chegará" ao Brasil no capítulo 8, e prevê que isso aconteça no início de 2007.

Ok, quando 2007 chegar, tornaremos a entrar em contato com o embaixador. Mas, enquanto isso, vamos contando nossa história.


Quando os americanos estavam chegando
Em outubro de 1961 o economista e diplomata norte-americano Merwin Bohan desembarcou no Recife com uma missão do presidente dos Estados Unidos, John Kennedy. Deveria elaborar um plano de desenvolvimento para o Nordeste. Comandando uma equipe de três dezenas de especialistas em áreas diversas, Bohan concluiu o trabalho em cerca de quatro meses. Em fevereiro de 1962 o relatório - intitulado Northeast Brazil Survey Team Report, "Missão de Estudos sobre o Nordeste do Brasil" - chegou às mãos de Kennedy. Pela primeira vez o governo dos EUA preparava um plano específico de desenvolvimento para uma região sub-nacional. A partir de então o Nordeste tornou-se área prioritária no mais ambicioso programa dos EUA para a América Latina, em toda a história: a Aliança para o Progresso, que pretendia num prazo de 10 anos e com um investimento de US$ 20 bilhões elevar o padrão de vida nos países latino-americanos a índices comparáveis aos do mundo desenvolvido. O programa faz neste mês de agosto exatos 45 anos, mas sem nenhuma celebração, porque fracassou.

O "Relatório Bohan” , como o plano ficou conhecido, não foi divulgado para o grande público. O DIARIO obteve uma cópia dele na Truman Library (Biblioteca Truman), onde estão os arquivos do presidente Harry Truman, na cidade de Independence, Missouri, nos Estados Unidos. A apuração jornalística poderia cessar aí, no documento e na sua descoberta, dado que a relevância de um e outro já justificavam uma reportagem especial. Em vez disso utilizamos o "Relatório" como ponto de partida para seguir adiante. Consultamos cerca de 300 páginas dos arquivos norte-americanos, incluindo 1) relatórios da CIA a respeito do Nordeste, que, embora já liberados, até então nunca haviam sido usados para estudos específicos sobre a região, e 2) pronunciamentos do presidente Kennedy e relatos de encontros oficiais em que ele se referiu ao Nordeste.

Novamente a reportagem poderia ter parado aí. Mais uma vez, fomos adiante. Localizamos personagens que participaram da história daquele período. Como, entre outros, o padre pernambucano que atuou junto com um agente da CIA (sem saber, diz o padre na entrevista que nos concedeu) e o especialista em direito constitucional (pernambucano formado na Faculdade de Direito) que tinha como livro de cabeceira a obra clássica de um norte-americano (Breviário de um homem de bem, de Benjamin Franklin), mas que presidiu e relatou o inquérito no qual os convênios assinados entre os EUA e estados do Nordeste foram considerados uma afronta à nossa soberania. Tivemos acesso à íntegra do inquérito - outra peça histórica, de repercussão nacional, mas hoje completamente desconhecida.

Entrevistamos brasilianistas norte-americanos, autores de obra reconhecida na área (como Joseph Page, Martha Huggins, Stefan Robock e Anthony Pereira), e brasileiros igualmente conceituados, como Francisco de Oliveira, Moniz Bandeira e Wanderley Guilherme dos Santos. A reportagem consistiu ainda na consulta a 410 edições do DIARIO entre 1961 e 1965, na busca de matérias e artigos sobre o Nordeste nos arquivos do The New York Times e na leitura de trabalhos acadêmicos do Brasil e uma bibliografia composta em boa parte de obras esgotadas ou nunca traduzidas para o português.

A conclusão do levantamento mostra que nenhuma outra área do Brasil, no período Kennedy (1961-1963), teve uma presença americana tão ampla quanto o Nordeste - o que inclui ajuda financeira (com um acordo específico para a região, assinado em 13 de abril de 1962, entre Kennedy e o presidente do Brasil, João Goulart), interferência na política interna, infiltração nos movimentos sociais e ação de agentes de CIA.

O trabalho durou cinco meses, com dedicação exclusiva do repórter. O prazo - talvez o mais longo já utilizado por um veículo do Nordeste na produção de uma reportagem -, as condições (para viagens, entrevistas e aquisição de material), os cuidados com a exatidão (a ponto de procurar checar cada fato não documentado em pelo menos duas fontes, explicitando no texto os casos em que a fonte era apenas uma) e o acesso a material inédito fazem deste caderno especial também um documento. Que reúne fatos dispersos, dando-lhes um sentido impossível de ser percebido quando analisados apenas isoladamente. Que conta histórias até então não contadas e resgata outras da injustiça do esquecimento. Que é uma contribuição jornalística à história não só do Nordeste, mas da própria América Latina e das relações com os Estados Unidos. E que, esperamos, tenha uma consistência à altura da importância dos acontecimentos que relata.




As aldeias na história
As relações dos Estados Unidos com o Brasil são escassamente abordadas em livros de autores brasileiros. Se em vez de "Brasil" a gente escrever "Nordeste do Brasil" e limitar o período aos anos 60, a soma será igual a zero.. Faça-se a lista das obras recentes sobre o golpe militar de 1964, de escritores nacionais - e mesmo aí praticamente não se fala na interferência norte-americana na região, apesar de toda a magnitude que ela teve. Trata-se de uma conspiração contra o Nordeste? Ou é puro preconceito? Nem uma coisa nem outra. Trata-se de um fenômeno que o historiador pernambucano Potiguar Matos já definia em 1974, com perfeição. "Os episódios históricos ocorridos nos Estados economicamente mais poderosos têm maior repercussão histórica, são apresentados com mais significação, e aqueles episódios ocorridos nos Estados economicamente mais fracos como que se diluem e desaparecem nas páginas da nossa História", dizia ele, em palestra sobre o sesquicentenário da Confederação do Equador. Em 1974 estávamos longe do atual estágio do desenvolvimento capitalista, a globalização - fase em que a defesa da história regional torna-se um imperativo para os que desejam preservar a memória e a identidade de suas aldeias. "Em resposta ao avanço do atual processo de globalização, que tende a estandardizar e a massificar os padrões de procedimentos e os costumes de cima para baixo, cresce o interesse das comunidades regionais e periféricas pela sua memória, pela sua história", dizem os organizadores do livro Intérpretes do Brasil - Cultura e identidade, lançado em 2004 em um estado também cultor da própria história, o Rio Grande do Sul. O caderno especial que ora lançamos segue nessa trilha. Sem provincianismo, que é a doença infantil da questão regional, mas convencido de que há uma singularidade nordestina nas relações Kennedy-Brasil. E com a convicção de que ser universal é pertencer a todos os lugares, mas sem deixar de pertencer ao lugar em que nasceu - seja o Rio Grande do Sul, o Nordeste, Chiuahaua ou qualquer outra comunidade do Brasil ou do mundo.

Oliveira Lima e Nabuco, pioneiros
O primeiro estudo produzido por um brasileiro sobre os Estados Unidos, estabelecendo comparações entre os dois países, é de autoria de um historiador e diplomata pernambucano, Oliveira Lima (1867-1928). Publicado em 1899, com o título Nos Estados Unidos - Impressões políticas e sociais, é resultado de uma vivência de três anos nos EUA e nele Oliveira Lima compara o atraso do Brasil com a modernização e crescimento pelo qual os EUA estavam passando. Em 1912, novo livro, The evolution of Brazil compared with that of Spain and Anglo-Saxon America, fruto de 12 palestras que dera em universidades americanas. Em virtude desses trabalhos ele "pode legitimamente ser considerado como um dos primeiros, senão o founding father [Pai fundador] dos brasilianistas norte-americanos", diz Paulo Roberto Almeida em O Brasil dos Brasilianistas (2001).

Outro pernambucano, o abolicionista e escritor Joaquim Nabuco (1849-1910), também deixou marca na origem das relações entre os dois países. Nabuco foi o primeiro embaixador do Brasil nos EUA, em 1906, aí ficando até a morte, quatro anos depois. Nesse período foi o embaixador mais influente da América Latina em Washington. Era amigo de Elihu Root, secretário de Estado, que ganharia o Prêmio Nobel da Paz em 1912, e um entusiasta da Doutrina Monroe ("A América para o os americanos"), convicto de que sem uma aliança com os EUA o Brasil estaria indefeso diante do expansionismo europeu.

Kennedy descobre o Nordeste. A história vai começar
Os grandes temas internacionais em 1961 eram Cuba, Berlim e o Vietnam. Mas naquele 14 de julho de 1961 o presidente John Kennedy fez um discurso em que colocava uma nova região no mapa da agenda internacional - o Nordeste brasileiro. "Nenhuma área tem maior e mais urgente necessidade de atenção do que o vasto Nordeste do Brasil", disse ele logo na abertura do seu discurso.

O pronunciamento faz parte do acervo da Biblioteca Kennedy, em Boston, Massachussets (EUA). Alguns trechos da fala do presidente - como o que fala do "vasto Nordeste do Brasil" - foram notícias do dia seguinte em grandes jornais do mundo inteiro, inclusive no mais influente de todos, The New York Times. Neste, com foto de Kennedy ao lado de Celso Furtado, superintendente da Sudene (Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste).

No Brasil, impacto e surpresa. A região só merecia atenção em períodos de seca e todos os seus problemas pareciam ser de ordem climática. "O Nordeste é uma causa perdida", era opinião dita mesmo por autoridades brasileiras. conforme conta o professor Stefan Robock, autor de uma das primeiras obras econômicas sobre a região (O Desenvolvimento Econômico do Nordeste, 1963). Mas agora era o homem mais poderoso do planeta que dizia ser aquela região "uma prioridade". Deflagrava-se ali um processo que, no dizer de Robock, hoje professor emérito da Universidade de Columbia, em Nova York, iria "projetar o Nordeste como um foguete no cenário internacional"

O acordo - Menos de um ano depois daquela frase, em 13 de abril de 1962, Kennedy e o presidente do Brasil, João Goulart, assinaram em Washington o Northeast Agreement ("Acordo do Nordeste"). O único acordo assinado pelos EUA, na época, destinado a uma região de um País. Previa um investimento de US$ 131 milhões na região, num prazo de dois anos (feita a atualização para os dias de hoje, seria o equivalente a US$ 650 milhões). Era muito dinheiro, quase o dobro do total do comércio então existente entre Brasil e União Soviética.

O "Acordo do Nordeste" hoje só é lembrado, vagamente, em obras específicas. Para Kennedy era algo tão importante que, por exigência dele, a embaixada no Brasil lhe enviava relatórios diários sobre os andamentos dos trabalhos na região. Foi o primeiro teste da Aliança para o Progresso - cujas metas, oficializadas em 17 de agosto de 1961, na conferência de Punta del Este (Uruguai), ambicionavam levar o desenvolvimento à América Latina em 10 anos, com um investimento (dinheiro público e privado) de US$ 10 bilhões. O mundo vivia sob a Guerra Fria, período em que EUA e URSS disputavam nacos do mundo (sem guerrear entre si; daí a expressão "Guerra Fria", em contraponto à guerra tradicional, "quente"). "A Guerra Fria não será ganha na América Latina. Mas pode ser perdida lá", dizia Kennedy. Com 6 milhões de habitantes, Cuba já era para ele uma gigantesca dor de cabeça - imaginem se o Brasil, com uma população 10 vezes maior, pendesse para a esquerda...

E é aí que o Nordeste entra na história. Ainda como candidato a presidente, em 4 de novembro de 1960, Kennedy fez discurso dizendo que se nada fosse feito a situação de miséria na América Latina iria provocar o aparecimento de "vários Fidel Castro". E citava um dado apavorante: "No Nordeste do Brasil o padrão de vida é tão miserável que em duas cidades de lá, este ano, nenhuma criança sobreviveu a mais de um ano de idade". Ele tomou posse em 20 de janeiro de 1961. No mês seguinte despachou para cá uma missão de auxiliares, como Arthur Schlesinger Jr., atualmente um dos mais respeitados intelectuais dos EUA, e George McGovern, do programa Food for Peace (Alimentos para a Paz). O relatório de Schlesinger Jr., que esteve na Zona da Mata vendo a vida como ela é, deixou Kennedy ainda mais preocupado. Precisava fazer alguma coisa.

Kennedy era um ávido leitor de jornais. Descobrira o Nordeste em duas reportagens publicadas no The New York Times, que tiveram grande repercussão nos EUA. A primeira, em 31 de outubro de 1960, tascava o título: "Pobreza do Nordeste gera ameaça de revolta". A segunda, no dia seguinte, mantinha o fogo alto: "Marxistas estão organizando camponeses no Brasil". Ambas eram de autoria de Tad Szulc, um dos mais conceituados correspondentes internacionais do NYT [veja matéria na página 7].

Tornada foco da atenção internacional, o Nordeste teve também o seu passado vasculhado - e o que se encontrou lá não oferecia tranqüilidade. Havia, primeiro, uma série de rebeliões em Pernambuco; depois, Canudos. No passado mais recente, um acontecimento ainda mais preocupante: em 1935 (ou seja, cerca de 30 anos antes do momento em que se fazia a análise) o Nordeste tivera um levante liderado pelos comunistas, a chamada Intentona Comunista. Nada mais nada menos do que a primeira rebelião comandada por um partido comunista nas Américas. Depois, nas eleições parlamentares de 19..., os comunistas haviam obtido uma grande vitória em Pernambuco: elegeram ...

No passado e no presente, todos os caminhos indicavam que, para os interesses do governo norte-americano, o Nordeste do Brasil era uma região perigosa.O presidente Kennedy não estava divagando ao dizer, naquele 15 de julho de 1961, que esta "vasta região" era sua preocupação mais imediata.

A história ia começar.


Todos os homens do presidente

Durante o governo Kennedy o Nordeste virou rota para os principais auxiliares dele. O primeiro grupo esteve aqui já em fevereiro de 1961, pouco mais de um mês depois de sua posse como presidente. Era comandado por dois peso-pesados: o professor Arthur Schlesinger Jr., atualmente um dos mais respeitados intelectuais dos EUA, e George McGovern, diretor do programa Food for Peace (Alimentos para a Paz) e que anos depois seria candidato - derrotado - a presidente.

Eles estavam em visita a América Latina. Estiveram ainda na Argentina, Peru, Bolívia, Panamá e Venezuela. Em Pernambuco, foram à Zona da Mata, ver a miséria cara-a-cara. Como fica um sofisticado cidadão de primeiro mundo ao deparar-se com a miséria a poucos passos de distância? Estarrecido, foi assim que ficaram Schlesinger Jr. e McGovern. Em 10 de março Schlesinger encaminhou memorando ao presidente Kennedy contando quão urgente era a necessidade de reformas na região.

Em julho de 1961 um irmão de Kennedy, em giro pela América Latina, também esteve aqui. Em Caruaru ganhou um artesanato em barro de Vitalino (um boi). No engenho Galiléia (Vitória de Santo Antão), onde havia surgido as Ligas Camponesas em 1955, encontrou-se com camponeses. De volta aos EUA, enviou para eles um gerador de energia, que ainda está lá (sem uso).

O poderoso Secretário de Defesa, Robert McNamara, que ficou no cargo de 1961 a 1968, foi outro auxiliar direto de Kennedy a visitar o Nordeste. A lista inclui ainda Sargent Shriver, diretor do Peace Corps (Voluntários da Paz), casado com uma irmã do presidente (o "Sargent" é nome próprio, não é patente militar). E Richard Goodwin, que escrevia os discursos de Kennedy e foi o autor do nome Aliança para o Progresso (originalmente concebido em espanhol, Alianza para el progreso).


Ascensão e queda do "Acordo do NE"

Embora hoje desaparecido da historiografia brasileira, o "Acordo do Nordeste" tem características que lhe dão importância internacional. É um caso exemplar para o estudo da ajuda externa e um marco para a reconstituição da interferência norte-americana no Brasil nos anos 60. Virou tese do brasilianista Riordan Roett, depois transformada no livro The Politics of Foreign Aid in the Brazilian Northeast ["A política de ajuda externa no Nordeste do Brasil"], lançado em 1972 nos EUA.

Ele ficou praticamente acertado já durante encontro de Kennedy com Celso Furtado (foto), em 1961. A oficialização veio em 13 de abril de 1962. Estabelecia um investimento de US$ 131 milhões, em dois anos, para obras de curto prazo, e posteriormente obras de longo prazo, em cinco anos, para as quais seriam liberados novos recursos. Não eram doações, mas empréstimos a juros e prazos bem mais favoráveis do que as taxas normais.

A base do programa era o Plano Bohan, mas o próprio Merwin Bohan discordou da forma como Washington tratou do assunto. Ele defendia que as ações deveriam estar subordinadas à Sudene e a participação de especialistas americanos ficaria limitada a uma pequena equipe. Mas os EUA montaram "um império" no Recife. s ficou responsável pela execução do "Acordo". O desentendimento entre USAID (organismo do Departamento de Estado, responsável pela execução do "Acordo")e a Sudene não tardou. A Sudene entendia que cabia a ela a direção dos trabalhos, e os americanos dariam apenas suporte e financiamento. A USAID pensava diferente - a realização dos trabalhos não envolvia subordinação à Sudene.

A visão dos problemas do Nordeste também eram conflitantes. Para a Sudene o problema era de desenvolvimento; para a USAID, embora isso verdade, a principal questão era de segurança - de impedir que a região viesse (pelas armas ou pelo voto) a ser tomada pelos comunistas nacionalistas ou esquerdistas, um trio que na visão dos EUA era uma coisa só.

Os americanos começaram então a fazer convênios direto com os estados, passando por cima da autoridade da Sudene e do próprio governo federal - tornou-se um caso de discussão sobre a soberania nacional. O impasse só foi resolvido com o golpe militar, quando Furtado e sua equipe foram exonerados. Do "Acordo do Nordeste" só obras de curto prazo (que tinham o objetivo imediato de enfrentar a influência esquerdista na região) foram executadas. As de longo prazo nunca saíram do papel. Em 1970, no governo de Richard Nixon, a Aliança para o Progresso foi extinta.

O Nordeste, segundo a CIA
O Nordeste era uma região "potencialmente explosiva", os comunistas e seus simpatizantes estavam a ponto de ganhar as eleições e "assumir o controle político" no Recife e em Pernambuco e o "aumento de 30% nos gêneros de primeira necessidade" favoreciam a agitação na região. Para completar, havia líderes "pró-comunistas" como Francisco Julião e Miguel Arraes, em ascensão eleitoral: havia técnicos como Celso Furtado, um profissional "respeitável" mas que tivera ligações com "o movimento comunista" no passado e mantinha no presente relações com a "extrema esquerda e nacionalistas” , como se não bastasse, havia ainda a seca, que levava os nordestinos a saquear armazéns. Tudo isso numa área que, em pobreza, era "comparável ao Haiti".

Este era o Nordeste descrito em relatórios produzidos pela CIA em 1961, 1962 e 1963 - todos eles lidos pela reportagem do DIARIO. Estão liberados para consulta pública, mas até agora nunca haviam sido pesquisados para um trabalho específico sobre o Nordeste. Com relação a questões nacionais, o tom dispensado a João Goulart é sempre hostil. O presidente brasileiro, que acabou derrubado pelo golpe militar de março de 1964, não passava de "um oportunista", conforme os relatórios.

Os integrantes da CIA usavam os consulados como base. No Recife havia um agente em 1961; dois em 1963 e quatro em 1965.

Arquivos abertos - Nos EUA existem desde 1966 a Lei de Liberdade de Informação, pela qual após determinado prazo são liberados alguns documentos confidenciais. A consulta dos relatórios da CIA pode ser feita no próprio site da Agência (www.cia.gov). Nos documentos liberados às vezes há trechos cobertos por tarjas; significa que sua revelação ainda pode prejudicar "a defesa do Estado". Ocorrem casos em que o mesmo documento é liberado em anos diferentes e, nesses casos, a liberação posterior traz o texto já sem as tarjas. Um exemplo: o relatório sobre a capacidade de "influência subversiva" de Fidel Castro na América Latina, produzido em 9 de novembro de 1962. Na primeira liberação um trecho estava coberto; só na segunda liberação (em 14 de março de 2000) desaparece a tarja e podemos ler que se trata de uma referência ao Nordeste - região brasileira que, segundo o relatório, "possibilitava a Castro muitas oportunidades".

Alguns trechos dos relatórios:

Ligas Camponesas (I): "Julião visitou Cuba e a China Comunista, e as Ligas são fortemente infiltradas por comunistas. Muitos dos seus membros são simpatizantes da nova Cuba" (The outlook for Brazil / "Perspectiva para o Brasil", em 8 de agosto de 1961)

Ligas Camponesas (II): "As Ligas Camponesas, fundadas em meados dos anos 50, por líderes comunistas e socialistas para agitar a região por reformas rurais, existem em muitas partes do empobrecido Nordeste do Brasil. (...) Francisco Julião, o principal líder das Ligas, iniciou cooperação com o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), dissidente do PCB, e que é pró-Pequim e favorável à violência revolucionária". (Peasant leagues in northeastern Brazil - "Ligas Camponesas no Nordeste do Brasil" / 1º de junho de 1962)

Previsão para o Nordeste em 1962: "O PCB e os aliados pró-Castro provavelmente manterão o pobre e rural Nordeste em agitação. Lá, os 25 mil membros das Ligas Camponesas, lideradas pelo pró-comunista e pró-Castro Francisco Julião tornou-se uma poderosa força de agitação entre os trabalhadores rurais" (The outlook for Brazil - "Perspectivas para o Brasil", 8 de agosto de 1961)

Ganhos da esquerda em 1961: "Os comunistas e seus aliados no Brasil obtiveram grandes ganhos nas últimas semanas, particularmente no Nordeste do país (...)" (Leftists gains in Brazil / "Ganhos da esquerda no Brasil", 15 de dezembro de 1961)

Conflitos pela reforma agrária: "O problema da reforma agrária está-se tornando uma aguda questão política. Já resultou em conflitos e pode provocar outros ainda mais sérios, em vista dos informes sobre a distribuição de armas para grupos de camponeses no Nordeste e no Rio Grande do Sul". (Brazil's six months under Goulart - "Seis meses do governo Goulart" / 23 de março de 1962)

Eleições em Pernambuco: "As três disputas governamentais mais significativas serão ao que tudo indica as de Pernambuco, o mais importante estado do empobrecido Nordeste brasileiro; de São Paulo, o coração industrial do Brasil, e do Rio Grande Sul, que é o estado do esquerdista presidente Goulart e do seu cunhado, Leonel Brizola, anti-Estados Unidos"

(The brazilian elections - "As eleições brasileiras" / 5 de outubro de 1962)

Celso Furtado: "É um respeitado economista e planejador, com uma eclética, mas predominante atitude estatizante. Foi anteriormente ativo no movimento comunista e ainda mantém estreita aproximação com a esquerda radical e com elementos nacionalistas “. (The character of the Goulart regime in Brazil - "Característica do governo Goulart" / 27 de fevereiro de 1963)

Comunistas em Pernambuco: "Os comunistas e seus aliados podem estar ganhando o controle da cidade do Recife e do Estado de Pernambuco, onde exercem uma forte influência" (Situation and prospect in Brazil / "Situação e perspectiva do Brasil",10 de julho de 1963)

A invasão que não houve
O governo brasileiro "sabia" que o Pentágono formulara um plano de emergência para invadir o Nordeste, afirma o escritor e historiador Moniz Bandeira. O plano, diz ele, surgira em virtude do temor dos Estados Unidos de que na região nordestina explodisse uma revolução ou conflito de grandes proporções sob inspiração de Cuba. Moniz Bandeira é o maior estudioso brasileiro do governo João Goulart e das relações Estados Unidos-América Latina, assuntos que há 40 anos estão no centro de suas obras. É autor de O governo João Goulart (lançado em 1978 e hoje na 7a. edição) e de Formação do Império Americano (2005). Em 6 de agosto último recebeu o prêmio de Intelectual do Ano (troféu Juca Pato, concedido pela União Brasileira de Escritores).

Em relação aos estudos sobre o período Goulart, as principais fontes de Bandeira são entrevistas com personagens daquele período (como o próprio Goulart), os arquivos desses personagens e documentação de arquivos tanto nacionais quanto dos EUA. Dessa documentação consultada por ele faz parte um informe encaminhado a João Goulart pelo SCIFI (o serviço de informações do governo) sobre "um campo de pouso clandestino em Teresina (PI)", que faria parte, segundo Bandeira, de uma "operação especial" organizada pela CIA para a eventualidade de uma invasão. O Itamaraty já atentara também para o alto número de vistos solicitados pelo embaixador Lincoln Gordon para norte-americanos que vinham ao Brasil. Só em 1962 chegaram aqui 4.968 americanos, marca superior a todos os anos anteriores, inclusive os da II Guerra Mundial, quando os EUA montaram bases militares no país. "A maioria deles tinha como destino o Nordeste", afirma Bandeira. Cientista político, professor titular (aposentado) de história da política exterior do Brasil, na UnB (Universidade de Brasília), Bandeira mora hoje na Alemanha. Esteve no Brasil no início de agosto, para receber o Juca Pato, quando falou com o Diario.

O golpe - A "ocupação do Nordeste" esteve no centro de uma dramática conversa entre o ministro San Tiago Dantas e o presidente João Goulart, em 31 de março de 1964, no Rio de Janeiro. A conversa foi relatada a Moniz Bandeira pelo próprio Goulart, em entrevista. As tropas golpistas do general Mourão já haviam saído de Minas Gerais. O governo contorcia-se, diante da queda iminente. San Tiago obtivera informações de que os EUA apoiavam o golpe. E, com certeza, disse ao presidente, iriam ocupar o Nordeste, onde já estariam vivendo como civis cerca de 5 mil militares.

Para Moniz Bandeira, ainda há muitas histórias a ser contadas da relação dessa época entre os Estados Unidos e o Brasil - particularmente no Nordeste. Ele reclama da pouca presença de pesquisadores brasileiros nesta área.


Armas e infiltração

Duas histórias da época em que a CIA estava com os olhos - e os pés - postos no Nordeste.

1) À meia-noite de 16 de julho de 1963 um misterioso submarino chegou à costa pernambucana. Era norte-americano, prefixo WZI-0983, seu comandante provavelmente chamava-se Roy, sobrinho de um general norte-americano chamado Mac Clark. Desembarcou em Pernambuco 750 brazucas, revólveres, espingardas e granadas, que foram transportadas para estados do Nordeste. Generais brasileiros, reformados, estiveram no desembarque. Tudo isso consta de um informe do SCIFI (Serviço Federal de Informações e Contra-Informações, órgão do governo federal), encaminhado ao presidente João Goulart e que hoje faz parte do acervo do governo dele, guardado no CPDOC (Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil), no Rio de Janeiro. A chegada de armas já era, em si, um fato grave. Mais ainda porque parte delas era fabricada na Tcheco-Eslováquia, na época um país comunista. O que diabos armas tchecas estavam fazendo numsubmarino americano? A suposição: era uma tentativa de provocação. Para que - quando necessário - fossem "apreendidas" e mostradas como prova de que os comunistas estavam armando "revolucionários nordestinos".

2) Havia no Recife um grupo de militantes dedicado única e exclusivamente à agitação. Mas não uma agitação como as outras. Eles recebiam dinheiro da CIA para imprimir publicações marxistas e distribui-las na cidade. O objetivo de sempre: confirmar a "penetração comunista" no Nordeste. Os recursos eram utilizados também para imprimir panfletos anunciando comícios e reuniões das Ligas Camponesas e assegurando que o líder do movimento, Francisco Julião, estaria presente. O problema é que nem Julião iria fazer-se presente nem havia os comícios e reuniões. Quando o povo chegava lá alguns elementos infiltrados (ligados àquele "grupo") provocavam brigas e desordens, tentando associar as Ligas e Julião à baderna. Quem conta esta história é o missionário norte-americano Fred Morris. Seu depoimento está no livro da pesquisadora Jan Knippers Black, United States penetration of Brazil (A penetração dos Estados Unidos no Brasil), publicado em 1977 nos EUA. Obra citada por estudiosos estrangeiros e brasileiros, é um minucioso levantamento da interferência americana no Brasil naquele período.

O padre, o agente secreto e um mistério
O sindicalismo e o cooperativismo rural pernambucano tiveram, nas suas origens, a participação da CIA, com dinheiro para pagamento de salários, realização de cursos e o envio para cá de um agente secreto, que veio trabalhar como "especialista em cooperativismo". A participação deu-se por meio de convênios com a CLUSA (Liga Cooperativa dos Estados Unidos), uma entidade privada norte-americana que era destinatária de recursos da CIA.

Após o golpe militar outra organização privada dos EUA, o Iadesil (Instituto Americano para o Desenvolvimento do Trabalho Livre), que tinha ligações com o governo norte-americano, também passou a atuar no movimento rural pernambucano. Convênios com esta última resultaram na construção de três centros sociais para a Fetape, em Carpina, Garanhuns e Ribeirão. Todos ainda em funcionamento.

O contato da CLUSA e do Iadesil em Pernambuco foi o padre Crespo, criador do Sorpe (Serviço de Orientação Rural de Pernambuco), entidade apoiada pela Igreja. No embate que se travava no campo pernambucano, no início dos anos 60, o padre Crespo e o Sorpe eram a ponta de lança da Igreja Católica para a fundação de sindicatos rurais. Tinham a oposição das Ligas Camponesas e do PCB - contrários à ação considerada moderada do Sorpe, que evitava conflitos e não queria saber de invasão de terras nem muito menos de "reforma agrária na lei ou na marra" (palavra de ordem das Ligas Camponesas).

Um exemplo da ligação deste movimento rural com os Estados Unidos verificou-se em novembro de 1962, com um fato inimaginável para os dias de hoje: no encerramento de um encontro de sindicalistas rurais de cinco estados do Nordeste, um dos participantes do ato foi o cônsul dos EUA no Recife, Lowell Killday.

Fetape - Ativo, conhecedor da área (nasceu em Bom Conselho) e com sólida formação teórica (formou-se em Paris), padre Crespo vivia cruzando canaviais a bordo de um fusquinha cujo ano não lembra mais, e vestindo uma batina cinza - esta com a qual aparece na foto ao lado. O trabalho logo rendeu frutos. A hoje poderosa Federação dos Trabalhadores na Agricultura de Pernambuco (Fetape) é resultado da ação dele. Criada em 6 de junho de 1962, obteve o reconhecimento do Ministério do Trabalho em 17 de outubro daquele ano - a primeira federação de trabalhadores rurais do Brasil surgiu em Pernambuco e sob inspiração da Igreja Católica. Na época, eram necessários cinco sindicatos legalizados para formar uma federação. O Sorpe tinha o controle dos sindicatos de Caruaru, Lajedo, Limoeiro, Timbaúba e Vitória de Santo Antão. Depois veio a criação das cooperativas mistas de trabalhadores, novamente a partir da ação do Sorpe do padre Crespo.

As ligações da CLUSA com a CIA foram reveladas em maio de 1967, em reportagem do The New York Times. Depois disso o Sorpe rescindiu o contrato com ela e "devolveu" (a expressão é do padre Crespo) o agente secreto. O brasilianista Joseph Page cita o caso deste agente, no livro A Revolução que nunca houve, sem mencionar o nome. O padre Crespo dá o nome: Thimoteo Rogen. Mas enfatiza: não sabia queele tivesse qualquer ligação com a CIA. Nunca teve qualquer indicação neste sentido, assegura. Quem também lembra do Thimoteo é o hoje sociólogo Francisco de Oliveira, que naquela época ocupava a superintendência-adjunta da Sudene. Conta que já havia então desconfianças sobre a verdadeira identidade dele, e que nunca aceitou aproximação com ele. "Ele queria era me cooptar", afirma. Em 1966 o arcebispo de Olinda e Recife, D. Hélder Câmara, também fazia a sua advertência sobre a relação com as entidades americanas: "Ficai alerta a ajudas que forem propostas em nome de sindicatos livres, pois elas são criadoras de peleguismo".

"Nem comunista nem capitalista" - Padre Crespo vive numa casa ampla mas modesta, cheia de galinhas no quintal, no Janga, subúrbio do município de Paulista (Região Metropolitana do Recife). Aos 74 anos, é pai de nove filhos. Cursou o mestrado em comunicação rural na UFRPE e fez de sua trajetória no campo o tema da dissertação Comunicação e Libertação - Relato analítico da trajetória de ummilitante junto a camponeses em Pernambuco, 1955-1990, apresentada em 2003. Licenciou-se da Igreja em 1972, para casar. D. Hélder Câmara foi quem celebrou o casamento. Como padre licenciado, continuou atuando na Igreja. Depois do golpe de 64 chegou a ser investigado pelos militares. Havia mandado um telegrama a João Goulart, apoiando as medidas a favor da reforma agrária. Mas nunca foi preso. Diz-se um homem sem ideologia, nem comunista nem capitalista, que defendeu os camponeses sempre seguindo a doutrina da Igreja. Com firmeza, conta ele, mas evitando conflitos e sem em nenhum momento aceitar a opção pela violência. Tem uma profunda admiração pelos Kennedy, em particular por Robert Kennedy, ao lado de quem andou pelos canaviais de Carpina (PE), quando o irmão do presidente americano esteve aqui em novembro de 1965.

A seguir, trechos da entrevista que, com a voz pausada e cercado de lembranças, concedeu ao Diario:

Entrevista [ Padre Crespo ]
Diario de Pernambuco: Como foi o seu contato com as entidades ligadas à CIA?

Padre Crespo: Havia no Nordeste na época uns 400 funcionários da USAID, era o trabalho de cooperação com o Nordeste, mas nenhum deles trazia na testa a sigla CIA.

Diario: O técnico em cooperativismo que veio trabalhar com o Sorpe na organização das cooperativas era um agente da CIA. O senhor tinha alguma informação sobre isso? Quanto tempo ele ficou aqui?

Padre Crespo: Ele era técnico em cooperativismo. Chegou aqui como técnico em cooperativismo. Conhecia muito o assunto, nos ajudou muito. Em 1968 começaram os rumores de que ele era da CIA e aí nós rescindimos o convênio e o devolvemos para a Liga das Cooperativas Americanas [CLUSA]. Foi uma perda grande para o movimento cooperativista, criamos 18 cooperativas com a ajuda dele. Então, o trabalho dele foi de grande importância para a gente, mas consideramos que era mais prudente agir assim, encerrando os convênios.

Diario: O senhor lembra-se do nome dele?

Padre Crespo: Claro, trabalhamos juntos durante anos, como é que eu ia esquecer? Era Thimoteo Rogen [ele soletra o nome, a pedido do repórter].

Diario: O senhor voltou a ter algum contato com ele depois disso?

Padre Crespo: Não, nunca mais.

Diario: Ele falava português?

Padre Crespo: Falava, muito bem.

Diario: O que ele disse quando vocês rescindiram o contrato?

Padre Crespo: Ele disse que não era da CIA.

Diario: Como foi o início dos contatos com a Liga das Cooperativas Americanas e com o Iadesil?

Padre Crespo: A Fetape já estava criada [em 1962] e era preciso que começássemos a criar as cooperativas. Era um momento em que precisávamos de uma melhor estrutura. Fui a uma reunião em São Paulo e lá encontrei um representante da organização sindical americana. Mais tarde a Liga das Cooperativas Americanas mandou um técnico em cooperativismo para nos ajudar a organizar as cooperativas.

Diario: Como foram os convênios?

Padre Crespo: Transparentes, todos transparentes, nada encoberto. Foi um convênio em que também participaram a Fetape, o Ministério do Trabalho, o Sorpe, a Liga das Cooperativas Americanas. A gente recebia recursos financeiros para montar a infra-estrutura das cooperativas, recebia recursos técnicos para a capacitação de lideranças, e recebemos um técnico em cooperativismo para nos ajudar, o Thimoteo.

Diario: E os os três centros sociais que a Fetape tem hoje?

Padre Crespo: Todos tiveram escritura pública passada para a Fetape, e com programas coordenados pela Fetape. Cada um deles, em Carpina, Garanhuns e Ribeirão, foi construído num terreno de 1 hectare. Diziam que a gente estava entregando o movimento aos americanos... Mas tudo era coordenado pela Fetape. E nós exigimos desde o início a escritura da doação do terreno e da doação do prédio. Nunca houve ingerência dos americanos, e esses centros ainda hoje servem à Fetape, como um espaço para debate, formação de lideranças.

"Sem levar o camponês ao extremo da revolta"
"O jovem agente da CIA que trabalhava como técnico da Liga Cooperativa (CLUSA) tinha se movimentado de modo rápido e silencioso para desenvolver contatos estreitos com o Sorpe e com o padre Crespo. Dentro de pouco tempo ele estava canalizando recursos da CIA para dentro do movimento a fim de ajudar no pagamento de salários e despesas do Sorpe e atrair pessoas que, de outro modo, poderiam não ter contribuído com seus esforços para o sindicalismo rural. Ele também trabalhou de maneira efetiva com as pessoas do Sorpe para estimular os novos sindicatos rurais e fundar cooperativas que poderiam fornecer uma ampla variedade de serviços agrícolas. Estas cooperativas futuramente produziram benefícios materiais para os seus membros. Mas de maior importância para os interesses da segurança dos Estados Unidos foi o fato de que sua organização e sua administração desviaram os líderes camponeses das lutas políticas no interior pernambucano, onde eles poderiam ter sido envolvidos nos esforços para obter modificações radicais no status quo. Embora tenha sido utilizado o descontentamento para convencer os camponeses a formar as cooperativas, o movimento cooperativista nunca negou sua aceitação das estruturas políticas e econômicas existentes. Certa vez, o próprio homem da CIA-CLUSA observou: "Ao convencer o camponês de que a miséria de sua condição é desnecessária, deve-se tomar o cuidado de não empurrá-lo até o extremo da revolta contra as autoridades e os interesses constituídos que o têm mantido no seu estado atual". Ao todo, a estratégia da CIA de financiar o Sorpe e de estabelecer cooperativas agrícolas foi uma ação bem concebida e bem executada para ajudar a reduzir o potencial revolucionário do movimento trabalhista rural em Pernambuco"

(Trecho do livro A Revolução que nunca houve, de Joseph Page)



Reencontro em 2003

Ethel Kennedy esteve em Pernambuco em novembro de 1965, acompanhando o marido. Voltou em 9 de maio de 2003, viúva - o marido, Robert Kennedy, foi assassinado nos EUA, em 1968. Nesta segunda visita ela exigiu que os organizadores da sua viagem agendassem um encontro com o padre Crespo e com Euclides Nascimento. Encontraram-se todos na sede da Fetape, centro do Recife. Falaram da situação da luta pela terra no Brasil e recordaram passagens do dia em que Robert esteve em Pernambuco. A ambos Ethel presenteou com uma medalha do Memorial Robert Kennedy (EUA).

Euclides Nascimento, líder sindical formado nos cursos do Sorpe, foi o primeiro presidente da Fetape. Estava no cargo quando Robert Kennedy veio a Pernambuco. Juntamente com o padre Crespo, o acompanhou na caminhada pelos canaviais de Carpina e Nazaré da Mata. "Os Kennedy são diferente de todos esses políticos dos Estados Unidos, de Bush, todos eles. O presidente Kennedy queria o bem da América Latina. Robert, também", acredita Euclides, que continua atuando na Fetape. "É por isso que quando um Kennedy vai subindo, eles matam", conclui. Eles, quem?, indaga o repórter. "Eles", torna Euclides, sucinto.

Padre Crespo também guarda dos Kennedy a melhor das impressões, sobretudo de Robert. "Ele queria uma América unida e livre. A gente estava no carro e ele disse isso: queria uma América unida e livre", recorda Crespo. O Brasil já se encontrava sob ditadura militar, instaurada com o golpe de 1964.

" A penetração da polícia dos EUA no Brasil ainda continua "
Cerca de cinco mil policiais brasileiros receberam treinamento nos EUA, entre 1963 e 1973, para enfrentar possíveis insurreições urbanas e rurais. Entre eles, policiais do Nordeste do Brasil. A cooperação com os Estados Unidos não era um fato novo, mas aquele tipo de treinamento, sim. Os estrategistas do governo norte-americano, na gestão Kennedy, queriam polícias "profissionalizadas" para o novo desafio da segurança - em vez de guerras convencionais, com exércitos enfrentando exércitos, irrompia um novo tipo de guerra, as de "libertação", em que os combates eram travados entre forças do próprio país. As polícias tinham aí peso decisivo. Podiam detectar - e combater - a ação da esquerda antes que elas descambassem para uma revolução. Esse raciocínio norteava a ação do Counter Insurgence Group (CI, na sigla em inglês. Era o Grupo Especial de Contra-Insurreição, organismo criado no governo Kennedy, com status ministerial). Nessa época (1962) deu-se também a criação da Academia de Polícia Internacional, onde houve os cursos.

A professora norte-americana Martha Huggins é hoje a maior especialista do mundo neste assunto. Durante 10 anos ela investigou o tema, pelo qual interessou-se em 1976, quando entrevistava um policial civil pernambucano e viu na sala dele um diploma de curso de treinamento nos EUA. O diploma visto na sala da Secretaria de Segurança Pública, no Recife, era o fio de uma teia da - nas palavras dela - "internacionalização da segurança norte-americana, mediante treinamento de polícias estrangeiras". Martha não revela o nome do policial pernambucano, mas diz que ele chegou ao fim da carreira em 1993, ocupando "cargo oficial" no Detran. A pesquisa da professora Martha virou o livro Polícia e Política - Relações Estados Unidos/América Latina (Cortez Editora), publicado em 1998. Ela volta ao tema em seu novo livro, Operários da Violência (UnB), recentemente lançado, e que tem como co-autores os professores Mika Haritos-Fatouros e Philip G. Zimbardo.

Martha Huggins é professor de Estudos Latino-Americanos e Sociologia na Universidade de Tulane, em Nova Orleans (EUA), de onde concedeu - em português - a entrevista abaixo:

Entrevista [ Martha Huggins ]
Diario de Pernambuco: O que despertou o seu interesse por este tema, da cooperação policial entre os EUA e a América Latina?

Martha Huggins: É uma história interessante. Em 1975, quando eu fazia pesquisas para o meu primeiro livro - From slavery to Vagrancy in Brazil [lançado nos EUA em 1984, mas nunca publicado em português] -, sobre a repressão contra escravos e homens livres no fim da escravidão em Pernambuco, conheci um integrante da Polícia Civil que recebera treinamento nos Estados Unidos, no Grupo Especial de Contra-Insurgência. Vi na parede da sala dele, em 1976, um diploma da AID. Resolvi naquele momento que, após terminar o livro no qual estava trabalhando, iria investigar o programa da AID. Em 1989, durante a pesquisa, li uma reportagem que listava os torturadores que haviam atuado durante o regime militar. O nome do policial de Pernambuco, que eu entrevistara em 1976, estava lá. Em 1993, quando fazia a pesquisa para o novo livro, Operários da Violência, tentei entrevistá-lo novamente. Ele não aceitou. Neste ano, 1993, ele estava no fim de carreira e ocupava um cargo oficial no DETRAN.

Diario: Qual o nome dele?

Huggins: Não posso revelar. A ética da pesquisa não me permite.

Diario: Houve outros policiais do Nordeste que participaram desses cursos? Eles ascenderam na carreira depois desses cursos?

Huggins: Sim, houve. Em 1993 eu entrevistei dois no quartel do Derby, em 1993. Os dois progrediram na carreira depois do curso. A maioria dos policiais que entrevistei, aí incluídos todos os dos outros estados, teve melhoria na carreira. Constatei isso também através dos dados da pesquisa.

Diario: A ação do Grupo Especial de Contra-Insurreição (CI) surgiu no Governo Kennedy, período em que o Nordeste estava sob forte tensão social. Como foi a relação com o Nordeste, nesta área policial, durante esta época?

Huggins: No Nordeste a ação do CI foi mais no sentido da colaboração entre o exército brasileiro e os EUA. Se a situação ficasse de alguma forma fora do controle a estratégia do CI exigia a entrada doexército, fosse sozinho ou em colaboração com os Estados Unidos.

Diario: Toda essa intervenção policial dos EUA não acontece mais? Ou continua acontecendo disfarçada sob outro nome?

Huggins: Grande pergunta. Sim, continua acontecendo. Agora, a penetração da polícia dos EUA nos países em desenvolvimento continua de várias formas. Existem programas de diversas agências dos Estados Unidos. É o que estou pesquisando no momento. Hoje em dia existem agências e pessoas não-governamentais atuando na área de treinamento de policiais internacionais. Neste modelo, corporações dos Estados Unidos recebem orçamento do próprio Estados Unidos - do Pentágono, principalmente - e atuam como "agência privada", criando uma situação muito perigosa e praticamente não-transparente.

Diario: Qual a participação do FBI nesse processo?

Huggins: A partir da década de 1990 o FBI entrou de novo na área de treinamento de polícias estrangeiras, e tem hoje um escritório no Rio - de novo, como nas décadas de 1930, 40 e, acho, 50. Eu nãoficaria surpresa se o FBI estivesse atuando hoje em Pernambuco na área de treinamento da polícia estadual. Hoje em dia o Departamento de Estado dos Estados Unidos tem programas que usam o FBI para promover treinamento policial.

A americanização do Brasil
Não começou com John Kennedy. Começou no pós-Guerra e consolidou-se durante a administração dos dois antecessores dele, Harry Truman (1945-1953) e Dwight Eisenhower (1953-1961). É aí que se encontra a origem tanto da incorporação maciça de palavras em inglês ao nosso vocabulário (como sex appeal, gangster, duplex, nylon e far west - esta "aportuguesada" para faroeste), quanto da absorção do gesto do polegar para cima ("thumbs up") como sinal de positivo.

O jogo pesado da americanização, porém, esteve muito além disso. A industrialização, por exemplo. Os Estados Unidos não queriam que o Brasil tivesse um "desenvolvimento industrial excessivo", capaz de vir a competir com as indústrias norte-americanas. A nós caberia apenas o papel de produzir matérias-primas; os EUA se encarregariam do processamento industrial delas e, fechando o círculo, de vender o produto para nós. Óbvio que a intenção não era expressa assim cruamente, em linguagem tão pouco diplomática, mas na prática esta era a política externa norte-americano para o Brasil, conforme mostra o pesquisador Gerald K. Haines, em The americanization of Brasil ("A americanização do Brasil"). O livro trata do período 1945-1954 e tem como fontes documentos de arquivos norte-americanos. Lançado nos EUA em 1989, é obra indispensável para quem deseja conhecer as relações entre os dois países.

O "não queriam" utilizado no parágrafo anterior deve ser entendido no sentido do que significa "não querer" para uma potência mundial - o sentido da interferência e da pressão. No caso do Brasil, excetuados alguns reveses (como a criação da Petrobras em 1954), os EUA foram muito bem sucedidos nessa tarefa, conta Haines. Os EUA, diz o autor, empenharam-se em "controlar, influenciar e moldar o Brasil rumo à modernização". Tudo isso seguindo uma agenda que consistia em "evitar financiamentos para projetos de desenvolvimento, explorar recursos estratégicos e promover os negócios americanos na indústria e na agricultura".

Como pano de fundo desta história, acrescente-se queo Brasil fora o único país da América do Sul a enviar tropas para lutar ao lado dos aliados, na II Guerra Mundial. Em seu segundo Governo (1951-1954), Getúlio Vargas queixava-se de que os EUA estavam ajudando a reconstruir a europa ocidental mas nada faziam pelo desenvolvimento do Brasil.

" É preciso tirar o Nordeste da poeira da História"
Com a autoridade de quem estuda a América Latina há mais de 40 anos, o brasilianista Joseph Page afirma que é "preciso tirar o Nordeste da poeira da história". Em entrevista ao Diario, da Georgetown University (Washington), onde é diretor, Page diz que os acontecimentos registrados na região no período 1960-1964 "contêm lições sobre a ineficácia da interferência dos Estados Unidos nos assuntos internos de outros países". Lições ainda atuais, enfatiza. "Dado o que está acontecendo agora no Iraque, porém, temo que elas não tenham sido aprendidas", diz.

Page é autor de A Revolução que nunca houve, o único livro a focar a presença americana no Nordeste entre 1960-1964 e também a única obra de um brasilianista a abordar o golpe militar de 64 a partir dos acontecimentos na região. Caso algum dia se faça a lista das dez obras mais importantes para a história contemporânea do Nordeste, A Revolução que nunca houve terá lugar garantido. Publicado nos EUA em 1972, traduzido para o português em 1989, está hoje esgotado.

A ação do governo Kennedy no Nordeste é tema de três obras fundamentais para a compreensão daquele período, todas também esgotadas: Desenvolvimento econômico regional - O Nordeste do Brasil, de Stefan H. Robock (1964), Política econômica na América Latina, de Albert Hirschman (1963) e The politics of foreign aid, Riordan Roett (1972) - este nunca lançado em português. Os três com foco nas questões de desenvolvimento econômico e ajuda externa. O livro de Page aborda estes aspectos secundariamente e concentra a atenção na tensão social e política vivida na região e no Brasil naquela época. Ele publicaria anos depois The Brazilians ["Os brasileiros"] e Peron: A biography.

O que ocorreu no Nordeste durante o período Kennedy, na opinião de Page, possibilita um abrangente estudo do subdesenvolvimento - "em ação e em conflito". É um episódio da história em que se confrontaram "mudanças e reacionarismo, opções políticas e opções militares" - um quadro de tensão social aguda numa área então classificada como"a mais pobre do hemisfério".

"Provavelmente", continua ele, a ação do governo Kennedy na região teve tanto a preocupação com o desenvolvimento quanto com a expansão das esquerdas na região: "Se a região se desenvolvesse economicamente, isto poderia contrapor-se ao apelo das organizações de esquerda". Esta linha de raciocínio "dá sentido" à singularidade de os Estados Unidos criarem um plano de desenvolvimento voltado exclusivamente no Nordeste. A Aliança para o Progresso e os Estados Unidos tinham por princípio elaborar apenas planos globais, não sub-nacionais. "Mas a responsabilidade pelo desenvolvimento reside no país anfitrião, não naquele que oferece a ajuda. Como uma nação soberana, o Brasil tinha a responsabilidade de decidir se o Plano Bohan era consistente com uma visão brasileira de desenvolvimento do Nordeste, e aceitar ou rejeitá-lo", afirma. Sobre as relações com a América Latina, Page destaca que elas "sempre foram marcadas pela indiferença da parte dos Estados Unidos". O que aconteceu entre1961 e 1970, quando da vigência da Aliança para o Progresso, "foi uma exceção à regra, provocada pelos temores surgidos da ameaça posta pela Revolução Cubana".

Deu - várias vezes - no New York Times
Para o leitor médio americano dos anos 60, o Brasil era um lugar incrivelmente distante onde se falava mañana e se fazia a siesta. Mas entre outubro de 1960 e abril de 1964 outras palavras foram associadas à imagem de país distante. Palavras como "Nordeste do Brasil", "Sudene", "Ligas Camponesas", "Recife", "Miguel Arraes" e "região brasileira vítima da seca" entraram em avalanche para as páginas da imprensa internacional. Vez por outra, havia menções até ao "padre Cícero" e "Lampião". Os principais jornais e revistas dos Estados Unidos, como o The New York Times e a Newsweek, e da Europa, como o Le Monde (França) e a Der Spiegel, da Alemanha, mandavam para cá repórteres e fotógrafos. A dimensão da importância que a imprensa internacional dava aos acontecimentos daqui pode ser medida com o fato de que para cá vinham os profissionais mais qualificados e em ascensão. Do NYT, por exemplo, vieram Tad Szulc e Juan de Onis, que se tornariam escritores com obra reconhecida. Não só as grandes publicações buscavam aregião; o The Christian Science Monitor, dos EUA, enviou um promissor jovem chamado Ralph Nader - o mesmo que viraria um símbolo da defesa do consumidor nos EUA e por três vezes disputaria a presidência americana como candidato independente, em 1996, 2000 e 2004.

Era tal a cobertura que as fotografias feitas no Nordeste acabavam servindo de ilustração para reportagens e artigos sobre a América Latina - como no artigo "Red shadows over Latin America" ( Sombras vermelhas sobre a América Latina), escrito pelo embaixador dos EUA na ONU, Adlai Stevenson, e publicado no NYT de 6 de agosto de 1961. A análise aborda todos os países latino-americanos, mas a foto que a ilustra é de Francisco Julião no Recife, tendo ao fundo um quadro em tamanho natural de Fidel Castro - de autoria do artista pernambucano Abelardo da Hora. Em outra, "Brasil circunda o abismo" (NYT, 18 de agosto de 1963), há três ilustrações: uma foto de João Goulart, a segunda da mulher dele, Tereza, e a terceira de Julião novamente, conversando com camponeses.

Do que foi publicado na imprensa estrangeira, as únicas reportagens mencionadas em teses e livros de autores brasileiros são as que saíram no NYT em 31 de outubro e 1º de novembro de 1960. A cobertura, porém, foi bem mais ampla. Incluía tanto os conflitos, como a morte do líder das Ligas em Sapé (PB), Pedro Teixeira, quanto experiências como a do Método Paulo Freire em Angicos (RN). Falava de anônimos e de líderes políticos, como Miguel Arraes, que numa matéria da Newsweek é citado como tendo dito que os únicos americanos de que gostava eram os cigarros - porque podia queimá-los...

Anos depois do golpe militar de 1964, no exílio, alguns líderes da esquerda brasileira consideravam que a cobertura internacional no Brasil - e em particular no Nordeste - fora "exagerada" e que servira aos interesses do governo norte-americano de justificar a interferência no País. O argumento se revela pouco consistente quando se lê as reportagens - muitas vezes contrárias aos chamados "interesses dos EUA".

Dias do Brazilian Northeast
Algumas das matérias publicadas sobre o Nordeste, no NYT, no período Kennedy:

1) Castro tries to export 'fidelismo' - "Castro tenta exportar Fidelismo" - . 27 de novembro de 1960 2)'Troubled land' seen ("Transmissão de 'Terra Conturbada'") - 15 de junho de 1961. Matéria sobre documentário da jornalista norte-americana Helen Jean Rogers, intitulado The troubled Land.

3) Leftist in Brazil warns of revolt - ("Esquerdista no Brasil alerta sobre revolta") - 18 de novembro de 1961:

4) Brazil Studying Rise of Peasant Leagues as Concern is aroused over violence in Northeast Region ("Ascensão das Ligas preocupa o Brasil, enquanto cresce violência no Nordeste") - 10 de abril de 1962. Sobre o assassinato do líder das Ligas Camponesas de Sapé (PB), João Pedro Teixeira, morto numa emboscada.

5) Risks and opportunity of Brazil's Northeast challenge aid Alliance of U.S. ("Riscos e oportunidade do Nordeste do Brasil desafiam ajuda da Aliança para o Progresso") - 17 de abril de 1962. "A Aliança para o Progresso está preparando-se para ajudar o desenvolvimento do Nordeste do Brasil em uma um período cheio de riscos e oportunidades", afirma texto de Juan de Onis.

6) Communism top issue in Brazilian State election ("Comunismo é tema principal em eleição de Estado no Brasil") - 3 outubro de 1962. O estado é Pernambuco e a eleição era entre Miguel Arraes e João Cleofas.

7) Brazilian governor scores U.S. Aid Plan (28 de outubro de 1962) - Sobre a acusação de Arraes de que os convênios diretos entre EUA e estados brasileiros eram inconstitucionais.

8) Brazil conducts a literacy drive ("Brasil faz jornada de alfabetização") - 2 de junho de 1963. "Projeto apoiado pelos EUA tenta alfabetização em 40 horas", destaca reportagem de Juan de Onis sobre o Método Paulo Freire em Angicos (RN)

9) Brazil's Goulart skirts the Abyss ("Brasil de Goulart circunda o abismo") - 18 agosto de 1963. De autoria de Juan de onis. Três fotos como ilustração: uma de João Goulart, no meio do povo; a segunda da mulher dele, Tereza Goulart, e a terceira de Julião, em encontro com camponeses".

10) 12 Slain as peasants fight police in Northeast Brazil ("12 mortos em conflito entre camponeses e polícia no Nordeste do Brasil") - 17 de janeiro de 1964.

Do Missouri para o Nordeste
Independence, no estado de Missouri, é uma cidade com pouco mais de 100 mil habitantes. Nos Estados Unidos é conhecida por ser a terra onde cresceu o presidente Harry Truman e para onde ele voltou, após seus dois mandatos. No Brasil, é mais uma das centenas de cidades americanas da qual nunca ouvimos falar. Convém atentar para Independence, porém. Lá estão guardados documentos que dizem respeito à história do Brasil e do Nordeste - e que nunca foram consultados por pesquisadores brasileiros.

O material está na Truman Library (Biblioteca Truman), que guarda o acervo documental alusivo a Harry Truman, presidente de 1945 a 1953. Os Estados Unidos têm 10 bibliotecas presidenciais. Na Biblioteca Lyndon Johnson, em Washington, estão documentos da época do golpe militar de 64 no Brasil - revelados pela primeira vez no Brasil pelo jornalista Marcos Sá Corrêa, em célebre matéria publicada no Jornal do Brasil. Em escala cronologicamente seguem-se as bibliotecas de Kennedy, Dwight Eisenhower e Truman.

Nesta encontram-se os papéis do embaixador e economista Merwin L. Bohan, que chegou ao Recife em 23 de outubro de 1961, para elaborar o plano recomendado por Kennedy. [Aqui, um esclarecimento: se o plano foi encomendado por Kennedy, por que está na Biblioteca Truman? Porque o início da carreira de Bohan deu-se durante o governo Truman] Estão lá o próprio plano, cartas, textos e uma entrevista de Bohan - e por essa documentação vê-se que a posição de Bohan contraria aquela que acabou adotada pelo governo dos Estados Unidos, na execução do "Acordo do Nordeste". Bohan - lemos nas cartas dele - defendia que todos os projetos deveriam estar subordinados à Sudene, exatamente o oposto do que aconteceu.

O trabalho de Bohan no Nordeste ganhou o nome oficial de "Missão de Estudos ao Nordeste do Brasil". O plano é abordado em dois livros lançados em 1972: Politics for Foreign Aid, de Riordan Roet (nunca publicado em português), e The revolution that never was (que saiu no Brasil como A revolução que nunca houve, pela Editora Record), de Joseph Page. A íntegra do plano, porém, nunca foi publicada. Para localizá-lo a reportagem do Diario pesquisou o acervo de cada uma das bibliotecas citadas, em contato por telefone e via internet. A busca parou na última biblioteca pesquisada: a Truman Library. Descobrimos que lá estavam os documentos de Bohan: não só o plano, mas a correspondência dele relacionada ao trabalho no Brasil. A gentil arquivista Carol Martim, fez a cópia do material (US$ 0,50 a página) e o enviou pelo correios. O Plano Bohan tem dois volumes, entre propostas e apêndices. Se nenhuma outra importância ele tivesse, ainda assim seu valor histórico seria inquestionável. Como diz o professor Stefan Robock, autor de uma das primeiras obras sobre o desenvolvimento do Nordeste: "Tanto a Aliança como os Estados Unidos enfatizam os planos nacionais globais como base para a concessão de ajuda. O governo norte-americano desviou-se desse princípio fundamental ao assumir os primeiros compromissos para com o Nordeste".

Saúde, irrigação, eletrificação rural...
O Plano Bohan faz uma análise geral do Nordeste e divide as medidas propostas em dois programas. Um de curto prazo, previsto para demorar dois anos (com medidas de impacto, capazes de combater a influência esquerdista na região), e outro de longo prazo, que deveria ser implantado em cinco anos. Bohan e sua equipe valeram-se do Plano de Desenvolvimento que fora elaborado pela Sudene, mas deram ênfase a pontos que nos projetos da Sudene eram secundários (como a educação básica e saúde). Embora muitos dos projetos do Plano Bohan estivessem contaminados pela preocupação de "combater o comunismo" e fossem considerados "meramente assistencialistas", neles havia pontos que décadas depois seriam incorporadas a programas da esquerda. Veja abaixo algumas das medidas (os trechos sob aspas são originais do Plano Bohan):

Curto prazo

ABASTECIMENTO D'ÁGUA

l Perfuração de poços artesianos onde sejam "necessários e viáveis para o serviço de pequenas comunidades ou mocambos";

l implantação de "sistemas de abastecimento para as cidades [do interior] com chafarizes, banheiros e lavanderias";

l ampliação dos sistemas de distribuição "das cidades litorâneas levando-os aos mocambos e à construção de chafarizes públicos para servir aos mais necessitados"

ELETRIFICAÇÃO RURAL

O item para o qual está prevista a maior parcela da verba de US$ 33 milhões destinada ao programa de curto prazo: US$ 9 milhões

POSTOS VOLANTES DE SAÚDE

Objetiva oferecer "imediatamente serviços médicos e sanitários onde atualmente não se conta com serviços ou instalações permanentes".

ALFABETIZAÇÃO E FORMAÇÃO PROFISSIONAL

Alerta para o fato de que a alta percentagem de analfabetismo combinada com a falta de "treinamento em artes e ofícios mais elementares" fazia com que os jovens entrassem no mercado como trabalhadores "não qualificados do mais baixo nível".

Outras recomendações

l Apoio à melhoria do ensino: Assistência dos EUA mediante "a exibição de filmes e fornecimento de projetos, complementados por unidades áudiovisuais móveis; ampliação do atual centro áudiovisual de Salvador (BA); implantação de três novos centros de educação áudiovisual no Recife, Fortaleza e Natal"

l Criação de acampamentos como os existentes nos Estados Unidos (chamados Acampamentos de Voluntários Civis de Conservação), em articulação com o corpo de engenheiros das Forças Armadas do Brasil. Para servir de espaço onde seria possível "dotar os elementos desempregados do meio rural de uma formação básica mais completa, proporcionando-lhes alguns conhecimentos agrícolas e industriais de caráter prático e objetivo, noções imprescindíveis de higiene, asseio e responsabilidades cívicas". Visava uma "clientela inicial de 2.500 indivíduos", mas poderia ser "prontamente desdobrado, de sorte a abranger 12 mil".

INSTALAÇÃO DE 'CENTROS OBREIROS DA ALIANÇA PARA O PROGRESSO'

Neles funcionariam um escritório da Delegacia do Trabalho; um centro de saúde para atender à população rural; cursos de extensão doméstico-agrícolas que tratariam de medidas básicas sanitárias, de problemas de higiene, de saúde e dealimentação, de aperfeiçoamento de métodos agrícolas e de técnicas horti-granjeiras; aulas básicas de alfabetização e centro social para a população rural com filmes educativos e recreativos. Outros serviços - como bibliotecas, agência de empregos, serviços de migração e escritório de crédito rural - poderiam ser também integrados aos "Centros".

O tom político da proposta

O objetivo oculto dessa medida era contrapor-se à influência das Ligas Camponesas. Por isso recomendava que os "Centros Obreiros" fossem instalados "as áreas onde existe maior concentração de trabalhadores rurais". E mais: "Nas terras açucareira do Nordeste, como podem os trabalhadores rurais saber que existe uma possibilidade de mudança e de progresso sem que precisem recorrer à violência? O que poderia trazer-lhes a esperança que agora necessitam tão desesperadamente?"

Longo prazo

INFRA-ESTRUTURA

l Melhoria do transporte rodoviário

l Ampliação do fornecimento de energia elétrica

SAÚDE

Propõe instalar 75 postos de saúde nos nove estados do Nordeste.

"Visto que essa atividade não está incluída no plano qüinqüenal da Sudene [grifo do repórter], torna-se importante enquadrá-lo nos programas dos órgãos regionais. A experiência adquirida com esta espécie de programa no Brasil demonstra claramente que postos permanentes localizados estrategicamente numa região e executando atividades normais de saúde pública, têm um notável efeito sobre a incidência de doenças contagiosas e o melhoramento geral das condições de saúde"

Propõe a "criação de uma série de centros de saúde para minorar, se não erradicar completamente, alguns problemas sanitários que caracterizam a região" e a implantação de um sistema de suprimento d'água "para que as deficiências do problema de saúde sejam radicalmente sanadas".

EDUCAÇÃO BÁSICA E PROFISSIONAL

Detalhamento:

l Prevê a construção de 39 mil salas de aulas, a um custo equivalente a US$ 1.100 por sala. "Admitindo que cada sala de aula seja utilizada por dois turnos de 40 alunos cada (80 alunos por sala, anualmente), o déficit escolar de 3 milhões de crianças [calculado para a região, na época] poderia ser eliminado".

l Construção de escolas primárias e de 10 centros de preparação de professores: "Uma das causas fundamentais do alto índice de analfabetismo do Nordeste é a absoluta insuficiência de escolas primárias. Calcula-se em 4,5 milhões o número de crianças em idade escolar existentes em todo o Nordeste, embora somente 1,4 milhões estejam realmente matriculadas, ou seja, 30%. Ademais, o corpo docente dessas escolas é em grande parte integrado por moças formadas pelas escolas normais espalhadas pela região, além de um grande número de "professoras leigas", que nunca freqüentaram uma escola normal".

l Escolas industriais e agrícolas: Cursos técnicos com dois anos de duração.

"À proporção que estes jovens tivessem oportunidade de aprender algum ofício básico sua produtividade aumentaria correspondentemente". E uma parcela deles resolvesse emigrar, tudo bem: "O grupo que pretende emigrar para o sul ou para a região centro-oeste teria maior segurança se fosse não como trabalhadores sem ofício, que há por todo o país, mas como trabalhadores com conhecimento de alguma profissão, tais como marcenaria, oficina metalúrgica, instalações hidráulicas, pintura, ofício de pedreiro, soldagem, oficina auto-mecânica etc.

MIGRAÇÃO

l Proporcionar instrução elementar (alfabetização) aos migrantes em potencial.

l Proporcionar-lhe algum aprendizado básico, como por exemplo o trabalho de madeiras e metais.

l Prestar-lhes assistência na escolha de uma carreira por meio de orientação profissional

l Selecionar os migrantes levando-se em conta o seu preparo, condições de saúde e adaptabilidade ao trabalho industrial

l Fornecer-lhe informações básicas sobre oportunidades de emprego, salários e condições de trabalho no resto do país

l Substituir o recrutamento particular (que no passado ocasionou graves abusos) e os movimentos desordenados de famílias inteiras em caminhões, por uma direção planificada do fluxo migratório através de um sistema nacionalde emigração, colonização e serviços de colocação profissional.

l Para facilitar a fixação permanente dos trabalhadores nordestinos em seu destino final, seria aconselhável o estabelecimento de postos de recebimento, recursos hospitalares e educacionais, bem como centros de colocação profissional.

Melhoramento da produção e

fornecimento de alimentos

Considera este elemento o mais importante uma vez que "para tornar o Nordeste uma região economicamente viável" é imprescindível o "ataque frontal às causas que impedem a expansão da produção de gêneros alimentícios e de outros produtos agrícolas".

"Os EUA não têm projeto para a América Latina"
"O que me impressionou no Plano Bohan foi sua abrangência, com uma exausta lista das avaliações, recomendações e projetos. Ele contém recomendações detalhadas sobre como combater a seca, melhorar o abastecimento de alimentos nas áreas rurais, melhorar os serviços médicos e educacionais, fazer a eletrificação rural, viabilizar o abastecimento de água, melhorar estradas e a tecnologia de comunicação. O relatório foi feito com a participação de acadêmicos especialistas em meteorologia, irrigação, administração pública, geologia, horticultura tropical, comunicações, extensão agrícola e educação industrial. Outro ponto importante é o seu significado para comparação da política externa dos Estados Unidos. Significa que o governo dos EUA realmente tinha um projeto para a região, nesta época. Nem todos concordam com o plano, evidentemente, e muitos o viram com suspeição. Mas o projeto existiu. Esta é a grande diferença entre a política externa dos EUA para a América Latina naquela época e hoje. Atualmente não há projeto dos EUA para a América Latina. A mensagem dos EUA hoje parece apenas ser: 'baixem as barreiras para a entrada de nossos produtos para que vocês possam comprá-los'

(Avaliação do cientista política Anthony Pereira, dos EUA, autor de obras sobre o Nordeste a América Latina e um dos entrevistados para este caderno

l Veja a entrevista completa dele na página 15

"Em 10 anos, melhoria do nível de vida"
"Existe oportunidade, se o esforço aqui sugerido for mantido por 10 anos, para se aumentar substancialmente o nível de vida no Nordeste. Havendo condições favoráveis, a atual renda per capita poderá ser duplicada ainda dentro do período de vida da presente geração (em 15 anos). Por encorajador que se apresente este projeto, ele tem que ser visto em função do nível de vida extremamente baixo hoje prevalecente. É provável que a taxa de crescimento prevista aqui não forneça um nível tolerável de consumo durante um período de 5 ou 10 anos, a menos que se tomem outras medidas de auxílio próprio e melhoria de estrutura. Tal perspectiva desencorajadora agrava-se ainda mais ao se compreender a diferença de renda. A solução para este dilema está em simultaneamente reduzir a densidade demográfica por meio de um ritmo acelerado de emigração. Como foi dito antes, a solução para os problemas do Nordeste deve ser encontrada na integração daquela região com o resto do país, que se encontra em rápida expansão. Tal integração exige, por sua vez, a concentração de esforços no melhoramento da produtividade e mobilidade do homem do Nordeste. Esta é, na verdade, uma tarefa importante e urgente para o Brasil e para a Aliança para o progresso"

(...)

"A fim de obter os maiores resultados no menor período de tempo, propõe-se o reinício, o mais breve possível, de muitos projetos atualmente suspensos por falta de recursos e concentrar os recursos, naqueles que possam ser postos em funcionamento em breve espaço de tempo. Segundo um levantamento procedido pela Fundação Serviço Especial de Saúde Pública, existem atualmente 126 projetos de serviços d'água em construção no interior do Nordeste. Os escritório de engenharia da SDESP no Nordeste estimam que pelo menos 48 destes poderiam ser concluídos dentro de um ano, uma vez obtida a verba, e 132 poderiam estar operando dentro de dois anos".

(Trechos do Plano Bohan)

"Os EUA não batem prego sem estopa"
Durante uma tensa reunião com o coordenador da USAID (Agência Americana para o Desenvolvimento Internacional) no Nordeste, John Dieffenderfer, o superintendente-adjunto da Sudene perdeu a paciência.

"O tempo dos marines já passou", disse em português, prontamente traduzido por um intérprete presente à reunião.

"Perhaps, perhaps", respondeu Dieffenderfer, um "talvez, talvez" que não precisou de tradução.

O encontro deu-se em 1963. O superintendente-adjunto, que na época tinha 26 anos, é hoje o célebre sociólogo Francisco de Oliveira, professor titular (aposentado) de sociologia da USP e autor de obras como Elegia para uma Re(li)gião (1993) e Os sentidos da democracia (2003). O diálogo acima foi contado por ele ao Diario, do seu escritório em São Paulo. Chico de Oliveira, como é conhecido por amigos e no meio acadêmico, foi testemunha e protagonista dos acontecimentos daquela época no Nordeste - momento em que, considera, os Estados Unidos interferiram nos assuntos internos do Brasil de forma tão"ampla e descarada" que é difícil encontrar paralelos na história. A conversa entre ele e Dieffenderfer reproduz o clima existente entre a Sudene a USAID, marcado por desentendimentos desde o início.

Merwin Bohan defendia que os EUA deveriam enviar um grupo enxuto de especialistas para trabalhar em cooperação com a Sudene. Seria mais eficaz e contornaria eventuais atritos provocados por sentimentos nacionalistas. Em vez disso, porém, veio uma missão completa da USAID. A embaixada dos EUA decidira que o Nordeste era um problema primeiramente de segurança e só depois, de desenvolvimento. A indicação de Dieffenderfer para dirigir a agência no Nordeste foi do embaixador Lincoln Gordon.

Ingerência - Chico de Oliveira posicionou-se contra a ajuda americana desde o início. Não era um instrumento de desenvolvimento eficaz para os países subdesenvolvidos, disse em discurso para universitários no Recife (depois publicado como O Nordeste e a Cooperação Internacional, novembro de 1962). Trazia estagnação em vez de progresso social e muitas vezes servia somente como "uma segurança contra as revoluções". Hoje, 44 anos depois, ele reitera: "Os Estados Unidos não batem prego sem estopa. Nunca ajudam ninguém sem interferir. Toda ajuda deles traz implícita alguma interferência". Quando o Plano Bohan circulou entre os círculos governamentais do Brasil, encontrou em Chico um crítico feroz. As medidas de curto prazo, segundo ele, eram "estritamente assistencialistas", e tinha como objetivo combater a ação das Ligas Camponesas e das lideranças das forças populares na região. As de longo prazo, na opinião dele, traziam embutido o propósito de criar uma estrutura capaz de ser utilizada pelos americanos, no caso de tornar-se necessária uma ação militar na região.

O golpe militar encerrou de vez todas estas discussões. "O Nordeste pagou caro. Era na região que estavam em curso as propostas e projetos mais inovadores", lembra ele, em seu escritório abarrotado de livros, reproduções de Velázquez e discos de Luiz Gonzaga.

Os problemas do Nordeste vistos pelo Plano Bohan
Saúde

"Um dos mais sérios problemas de toda a região do Nordeste segundo o número registrado de óbitos e o coeficiente de incidência patológica, é a diarréia, cujo índice de mortalidade é 10 a 20 vezes superior ao dos Estados Unidos. O índice de mortalidade infantil, superior a 400 mil em duas das capitais, situa-se entre os mais altos do mundo. O tempo perdido, os esforços em vão, e o custo da luta contra a diarréia constituem um dos principais sorvedouros da economia do Nordeste. A história do desenvolvimento de Porto Rico e dos Estados Unidos, bem como estudos epidemiológicos em muitas partes do mundo, têm demonstrado de modo decisivo que o uso da água em quantidades razoáveis e de boa qualidade surte resultado cabal na redução da moléstia".

Saneamento básico

"A melhoria das condições sanitárias é, juntamente com o aperfeiçoamento da instrução e do artesanato, o elemento vital na valorização dos recursos humanos do Nordeste.

Razões da baixa produtividade

"A baixa produtividade da região decorre de uma diversidade de fatores:

l Os métodos de cultivo adotados não se valem dos aperfeiçoamentos tecnológicos;

l a população economicamente ativa é em sua grande parte constituída de analfabetos e possui pouco resistência física, em virtude de uma alimentação deficiente, e as precárias condições de saúde são atribuídas à inexistência de instalações sanitárias e água potável

.l a estrutura agrária remonta ao período colonial e não oferece incentivos ao progresso, seja da parte do proprietário das terras ou do lavrador, condicionada a imposições institucionais (o sistema de preços mínimos para o açúcar, por exemplo, oferece proteção aos produtores nordestinos marginais, contra a concorrência da região açucareira de São Paulo, de rendimento mais eficaz);

l quadros empresariais que primam pela ausência em contraposição ao resto do território nacional;

l de resto, as secas periódicas e a distribuição irregular das precipitações pluviais normais na região, acarretaram o agravamento dos problemas de estrutura"

Desemprego disfarçado

"Outro sintoma da penúria imanente à região, conjugado com a inexistência de oportunidades de emprego, pode ser observado na grande parcela da força de trabalho no denominado setor terciário [comércio]. À guisa de exemplificação existe uma percentagem de 18% em serviços, em contraposição a uma percentagem de 10% em toda a indústria. Essa proporção é de molde a sugerir um apreciável índice de desemprego disfarçado. Ocorrências recentes puseram em foco o perigo inerente a essa contingência no que se refere ao progresso social e econômico da região, projetando-se além de seus limites, para interessar a todo o Brasil e o hemisfério" (Trechos do Plano Bohan)

Todas as queixas do autor
O economista e embaixador Merwin Lee Bohan morreu em 1975, aos 76 anos, desiludido com o destino que os Estados Unidos deram ao seu plano para o Nordeste. Em carta enviada ao pesquisador Riordan Roett, autor de um livro sobre o "Acordo do Nordeste", Bohan dizia que nada tivera a ver com o que acontecera com o programa após março de 1962. O Plano Bohan fora entregue a Kennedy no mês anterior. "Depois que soube que o Império da USAID decidira montar uma sede no Recife, desinteressei-me completamente dos acontecimentos", afirma ele na carta. A USAID era o organismo do Departamento de Estado encarregado, entre outras coisas, da aplicação do "Acordo do Nordeste".

A carta - obtida pelo Diario na documentação de Bohan guardada na Truman Library (Biblioteca Truman), em Independence, Missouri (EUA) - revela a discordância dele com os rumos que o programa tomou. Afirma que o trabalho deveria ser feito "em cooperação" com a Sudene. E que os comunicados do governo americano sobre o assunto falavam a princípio em umaequipe de 5 ou 6 "qualificados" especialistas para trabalhar em parceria com a Sudene. Em vez disso o que se verificou foi o envio de uma grande equipe - mais de uma centena deles.

Uma entrevista de Bohan, concedida em 1975, consta também do acervo da Truman Library (Oral Interview). Nela o embaixador é ainda mais explícito em relação às críticas. "Em uma carta [enviada a Teodoro Moscoso, coordenador geral da Aliança para o Progresso] a gente recomenda que fosse enviado no máximo 7 ou oito técnico [americanos] ao Nordeste do Brasil, para trabalhar com a altamente nacionalista Agência de lá [a Sudene]. Sete ou oito. Dentro de um ano havia mais de 150 em uma pequena cidade do Nordeste. O programa foi arruinado pela burocracia".

A carta a que ele se refere - da qual também obtivemos cópia -, encaminhada a Teodoro Moscoso, é de 30 de janeiro de 1962. "Não há panacéia para os problemas do Nordeste. Estes problemas podem sem enfrentados apenas por meio de um longo e paciente esforço para melhoria de fatores humanos e materiais da região", escreve ele. "Isto quer dizer que a educação deve ter a mesma prioridade dada a medidas econômicas".

Bohan diz na carta que as obras de curto prazo previstas no programa podem, "se executadas imediatamente", convencer "as massas do Nordeste da realidade da Aliança para o Progresso, acalmar a inquietação das massas e darão tempo para que a Sudene ponha em execução medidas para aliviar a região da opressiva pobreza".

Todo o programa da Aliança para o Progresso previa a instalação de placas e símbolos nas obras, mostrando o responsável por elas (ou seja, a Aliança). Bohan discordava dessa tônica "propagandista". Em nova carta a Teodoro Moscoso, em 6 de abril de 1962, ele afirmava: "A preocupação com nossa imagem é ingênua e perigosa. Nos leva a cometer o erro de tentar vender a nós mesmos, em vez daquilo que nós representamos". O resultado disso era pôr as pessoas sob a "desconfortável obrigação" de mostrar-se agradecidas. O reconhecimento mais eficaz, dizia ele, era aquele que acontecia "espontaneamente". O que os EUA precisava era de uma "ponte" com a América Latina, coisa que deixara de ter desde a II Guerra Mundial, afirmava ele.

Glossário
Aliança para o Progresso: Programa criado pelo presidente John Kennedy para o desenvolvimento da América Latina. Suas metas, lançadas oficialmente em 17 de agosto de 1961, defendiam "teto, trabalho, terra, saúde e educação" - um ideário que transposto para os dias de hoje seria considerado de "esquerda" ou até mesmo (dependendo de quem o avalia) de "extrema-esquerda". Na época foi um programa criado para contrapor-se à influência da Revolução Cubana, que se espalhava por toda a América Latina. "Aqueles que tornam impossível a revolução pacífica farão inevitável a revolução violenta", dizia Kennedy. A Aliança para o Progresso pretendia, entre outras coisas, garantir o crescimento econômico da América Latina, erradicar o analfabetismo, assegurar escolas para todas as crianças em idade escolar, aumentar em cinco anos a expectativa de vida, fazer a reforma agrária e reduzir o desemprego. Tudo isso a um investimento de US$ 20 bilhões, para aplicação em 10 anos. A Aliança para o Progresso foi a versão "latinizada"do Plano Marshall, que reconstruiu a Europa Ocidental no pós-guerra. O Plano Marshal deu certo; a Aliança, não. Entre os vários motivos por que isso aconteceu, dois se destacam: 1) a resistência da conservadora elite latino-americana a reformas; 2) a opção dos EUA em priorizar medidas de segurança para "conter o comunismo", o que acabou contaminando a face desenvolvimentista do programa. A Aliança para o Progresso acabou em 1970, no governo Richard Nixon, sem atingir nenhuma das metas previstas.

Guerra Fria: Trata-se da disputa travada entre União Soviética e Estados Unidos, após a II Guerra Mundial. O nome "Fria" deriva do fato de não ser uma guerra tradicional (com exércitos em luta). Seu período mais tenso foi exatamente durante o governo Kennedy, com a invasão da "Baía dos Porcos" por exilados cubados treinados pela CIA (17 de abril de 1961), a construção do Muro de Berlim (13 de agosto de 1961) e a Crise dos Mísseis (outubro de 1962). Os acontecimentos verificados no Nordeste e no Brasil, na época, estiveram diretamente ligados ao clima da Guerra Fria.

"Foi uma invasão silenciosa"
Germano Coelho presidiu e relatou um inquérito que se transformou na primeira e única contestação oficial à política do governo Kennedy para o Brasil. Contestação de um governo eleito, feita com base em documentos. Aconteceu em fevereiro de 1963. Recém-empossado governador do Estado, Miguel Arraes nomeou uma comissão para investigar os acordos existentes entre Pernambuco e os Estados Unidos. Formada por seis intelectuais: Antonio Baltar, Salomão Kelner, Augusto Wanderley Filho, Luiz Pandolfi, Gildo Guerra e Germano Coelho, secretário estadual de educação e cultura. Por decisão dos integrantes da comissão, Germano - professor de direito constitucional, com mestrado em Paris - assumiu a presidência e a relatoria da comissão. Os trabalhos começaram em 12 de fevereiro e foram concluídos em 1º de maio de 1963. Reuniu documentos colhidos no Brasil e nos Estados Unidos. E ao juntar todas as informações constatou algo que, em conjunto e em minúcias, era impactante: o governo dos Estados Unidos estava priorizando acordos diretos com estados onde o governador fazia oposição ao presidente João Goulart, e beneficiando com o maior montante de recursos aquele que deveria ser o candidato oposicionista à presidência, Carlos Lacerda, governador da Guanabara. "Era uma invasão, uma invasão silenciosa. Estava tudo ali, nos dados que reunimos, nos documentos", recorda Germano. Para o governo dos EUA era outra coisa: chamava-se "política das ilhas de sanidade administrativas", termo cunhado pelo embaixador Lincoln Gordon. Oficialmente consistia no apoio preferencial aos estados que estivessem sendo "bem administrados". Coincidentemente, as "ilhas de sanidade" eram governadas por opositores de Goulart... O resultado do inquérito foi divulgado em reunião na Sudene, da qual participou o próprio embaixador Lincoln Gordon. Em 80 páginas, um contundente diagnóstico da ação norte-americana. "Foi uma surpresa para o Lincoln. Ele não esperava nunca um trabalho com aquela profundidade. Ele não conseguiu responder. Ficou calado. E eu disse para um colega na reunião: 'Calamos o imperialismo americano'", conta Germano, que mais tarde seria prefeito de Olinda e hoje é superintendente executivo do CIEE (Centro de Integração Empresa Escola).

O estudo feito em Pernambuco ganhou repercussão nacional e internacional. Mostrava que os EUA estavam passando por sobre a autoridade da Sudene e do presidente João Goulart, assinando convênios diretos com os estados. Isso era inconstitucional, afirmava o inquérito, que virou livro da Editora Brasiliense, com o título Aliança para o Progresso - resultado de inquérito, lançado ainda em 1963. Com base no estudo, Arraes cancelou todos os convênios assinados entre Pernambuco e os EUA. É a história desse inquérito que Germano Coelho nos conta nesta entrevista, concedida com duas características que ele mantém desde aquela época: um sorriso permanente e uma cultura que passeia pela história e pelo espírito das leis com a familiaridade de quem se sente em casa.

Entrevista [ Germano Coelho ]
Diario de Pernambuco: Vamos começar tirando uma dúvida: naquela época o senhor era anti-americano?

Germano Coelho: Eu, anti-americano? Sabe qual era o meu livro de cabeceira, um livro que influenciou tanto a minha vida? Breviário de um homem de bem, de Benjamin Franklin, um dos que assinaram a Constituição americana. Posso ser anti-americano se um dos livros que mais influenciaram minha vida foi o de Benjamin Franklin?!... Naqueles tempos o que eu via era que os americanos estavam aqui cometendo um crime contra o Brasil.

Diario: Quando na reunião com o embaixador Lincoln Gordon o senhor disse "Calamos o imperialismo americano"...

Germano: Há dois campos nos Estados Unidos. O campo do atual presidente Bush, que é um campo que se faz entendido pela força, pela violência, pelas armas, e o campo com o qual eu me identifico, da constituição americana de 1787. o campo de Roosevelt, da luta pela liberdade, democrática, do New Deal, o campo das chamadas public corporations [corporações públicas]...

Diario: Como era a situação na administração de Pernambuco, quando o senhor assumiu?

Germano: Encontrei a USAID, um órgão do Departamento de Estado dos EUA, com um controle efetivo da Educação. Havia convênios assinados entre o governo anterior, de Cid Sampaio, diretamente com os americanos. Era uma influência muito. Eles é que tinham recursos para investir e implantar escolas em todo o território.

Diario: Na prática, como se dava esta influência?

Germano: Por exemplo: havia uma escola recém-construída com verbas dos convênios. Eu queria abrir essa escola, colocá-la pra funcionar, mas dependia da liberação do professor Philip Schwab, que era o assessor para educação da USAID no Brasil. Então veja: eu, secretário de educação, queria colocar uma escola para funcionar e não podia. Só com a autorização do professor Schwab. E aí eu comecei a me documentar. Mandava ofício para o professor Schwab para a abertura de tal escola, recebia ofício dele comunicando porque não podia... Fui juntando documentação, provando que eu era secretário de educação mas o Estado não tinha mais o poder quanto à educação.

Diario: Como era o funcionamento da USAID em relação à secretaria de educação?

Germano: Eles possuíam muitos recursos. Havia profissionais locais que preferiam trabalhar para eles, porque pagavam melhor. Naquela época nós queríamos alugar um prédio para mudar a sede da secretaria da educação. Íamos alugar um prédio de oito andares, que fica no Bairro do Recife, em frente ao prédio atual do Banco do Brasil. Mas a USAID chegou primeiro e alugou o prédio. Quer dizer, o lugar que daria para [sediar] a secretaria de educação foi o lugar em que eles ficaram. Por aí você vê a dimensão da estrutura deles. Era um escritório enorme. Não tratava só de Pernambuco, mas do Nordeste inteiro.

Diario: Como foram os trabalhos da comissão encarregada de investigar os convênios?

Germano: Nenhum de nós, era filiado a partido. Reunimos um grande material. Mandei buscar os documentos na União Pan-Americana [entidade sediada nos EUA, que guardava a documentação dos convênios]. Em inglês e português. Tinha de comparar nos dois idiomas, comparar o sentido. Porque aí você podia captar mais a dominação.

Diario: O que vocês descobriram?

Germano: O problema não era só Pernambuco, não. A gente descobriu que Aluízio Alves, do Rio Grande do Norte, tinha convênio assinado com o presidente Kennedy. Que Petrônio Portela, do Piauí, tinha convênio assinado... Ora, nenhum estado-membro pode assinar convênio com uma nação estrangeira. Só quem pode assinar convênio com outra nação são os países. O Brasil. Então, eles passaram por cima do governo de João Goulart.

Diario: Mas estes convênios dos outros estados já era uma coisa conhecida no Brasil, não? Eram acordos abertos, com solenidades...

Germano: É, mas isso se conhecia fragmentadamente. Não da forma que a gente mostrou.

Diario: Qual foi o problema mais grave que vocês descobriram?

Germano: Fizemos um levantamento detalhado sobre quem era o governador, a que partido pertencia e quanto recebera. Quando concluímos olevantamento, estava lá: todos os governadores eram da UDN, que fazia oposição a João Goulart. E havia um "Acordo do Nordeste", mas o estado que mais recebera recursos fora a Guanabara, de Carlos Lacerda, também da UDN, e que era o nome da oposição, apoiado pelos americanos, para disputar a presidência em 1965. O que você tinha ali era uma articulação clara. Recursos para governadores contrários a João Goulart e, dentre estes, o mais beneficiado era exatamente aquele que iria disputar a presidência. Era uma invasão silenciosa. Uma articulação política interna feita por uma nação estrangeira. Uma coisa gravíssima. Afrontava a soberania do Brasil.

Diario: Esse quadro, inteiro, era desconhecido no Brasil? Foi a primeira vez que esta situação foi mostrada dessa forma?

Germano: Foi, era algo desconhecido no Brasil. Tudo o que se tinha era informação dispersa, fragmentada. O Inquérito que nós fizemos mostrou a dimensão do problema. Eu fui a Brasília, levei o resultado ao ministro da Justiça, João Mangabeira. Olheo que João Mangabeira disse [em tom solene]: "Só podia vir de Pernambuco. Vocês estão defendendo a Federação! Nunca se viu uma coisas dessas, um estado-membro assinar acordo com uma nação estrangeira!". Fui também ao ex-presidente Juscelino Kubitschek, que tinha muito prestígio com Kennedy. Contei o que estava acontecendo, deixei o texto do inquérito lá. Três dias depois ele deu entrevista dizendo: "Pernambuco tem razão. A Aliança para o Progresso precisa ser revista".

Recomendações específicas
"1º) O Estado de Pernambuco deve denunciar os acordos eivados de flagrante inconstitucionalidade, estruturados de modo a consubstanciar uma abdicação de prerrogativas inalienáveis.

2º) O Estado de Pernambuco não deve admitir nenhuma forma de debilitamento e alienação de seus órgãos administrativos, como por exemplo a criação de entendidas paralelas para a co-direção de programas específicos; a atribuição de gratificações que equivalem ou excedem os vencimentos de seus funcionários, degradando, assim, o serviço público; e a divulgação, perante a opinião pública, a pretexto de criação de uma mística da Aliança para o Progresso, de todas as realizações administrativas como oriundas de um órgão cada vez mais identificado com a agência de um governo estrangeiro.

3º) O Estado de Pernambuco não deve admitir, no cumprimento de suas tarefas administrativas, que os projetos total ou parcialmente financiados por ajuda externa sejam elaborados, dirigidos ou controlados por representantes de qualquer órgão estrangeiro".l Trecho do inquérito sobre a Aliança para o Progresso, realizado em Pernambuco em 1963

A versão de Cid Sampaio
Cid Sampaio governou Pernambuco de 1959 a 1962. Está hoje com 85 anos e, devido a problemas de saúde, encontra-se impossibilitado de dar entrevista. Em 1963 ele lançou um livro sobre o seu mandato, Quatro anos de governo. Abaixo, o trecho em que ele fala sobre os convênios com a Aliança para o Progresso:

"(...)ajuda substancial foi a resultante de convênio firmado com o governo norte-americano, instituindo-se o serviço que se denominou "Serviço Educacional Aliança para o Progresso" e que começou a funcionar em agosto do ano próximo findo. (...) Elaborado um plano de construções escolares e instituído um órgão de estudos, fiscalização e execução, constituído de engenheiros e técnicos do Departamento de Obras da Secretaria de Viação, foi possível, em menos de um semestre, através de uma ação intensiva, rápida e sistematizada, a edificação de 60 salas de aula, ficando em construção mais de 250, distribuídas pela Capital e por todo o interior do Estado. Os programas de construção e aquisição de mobiliário são feitos trimestralmente. O plano global prevê 1.200 salas de aula, obrigando-se o governo norte-americano, através da USAID, a inverter no programa conjunto a soma de um milhão de dólares.

A Aliança para o Progresso, em Pernambuco, se converteu num sistema conjugado de esforços de dois governos para a solução do problema educacional elementar, que, nem por ser um problema de espaço interno, deixa de se projetar no espaço internacional, tantas são as suas implicações e seus interrelacionamentos. Menos que intervenção assistencial de outra nação, economicamente forte - o que importaria, de certo, numa omissão do assistido em achar o seu próprio caminho, com todas as conseqüências, daí advindas para a personalidade moral e material de um povo - representa a contribuição norte-americana, uma participação no auto-esforço ao povo de Pernambuco"

Good morning, Recife
Nunca os Estados Unidos estiveram tão próximos do Recife quanto naqueles agitados anos do governo Kennedy. E também, naqueles agitados anos, nenhuma outra região latino-americana recebeu tantos norte-americanos quanto o Nordeste. E ainda, em tempo algum, pernambucanos e nordestinos receberam tantos convites para visitar os Estados Unidos - com tudo pago, of course - quanto naqueles agitados anos. Era tamanha a presença norte-americana que ninguém se surpreendia ao abrir o jornal e ver uma cena inusitada em qualquer época: um almirante dos EUA, todo sorrisos, com um mal colocado chapéu de cangaceiro na cabeça. Pois aconteceu. Saiu na primeira página do Diario de 10 de maio de 1963. O almirante chamava-se Tyree Jr., comandava as forças navais dos EUA no Atlântico Sul e pôs o chapéu de cangaceiro durante festa para recepcioná-lo no Clube Internacional.

Toda esta história começou a partir do interesse do presidente Kennedy pela região. Vieram depois o "Acordo do Nordeste", reportagens no The New York Times, fotos de manifestações das Ligas Camponesas em tudo que era jornal e revista (aquelas cenas de camponeses com as foices pra cima e coisa e tal), dólares, o temor e a ansiedade de um novo foco de conflitos no mundo - e pronto, o Nordeste entrou na rota internacional, como uma escala obrigatória.

A conexão com os Estados Unidos estreitou-se ainda mais em 1963, quando a companhia aérea norte-americana Pan Am pôs em atividade um vôo Recife-Nova York. A aeronave, uma das mais modernas da companhia, tinha capacidade para 138 passageiros. O vôo inaugural partiu daqui em 23 de maio daquele ano. A viagem era sem escalas e demorava 9 horas. Tempo mais curto do que a viagem do Recife a Petrolina, no Sertão, que na época só podia ser feita de carro e demorava pelo menos 10 horas - a maior parte do trajeto sob poeira, porque de Caruaru em diante seguia-se por estrada de terra.

Pernambuco era o Estado mais influente do Nordeste e o Recife era a capital que todos visitavam ao vir à região. A rota era percorrida também por europeus. Como o célebre fundador do Le Monde, Beuve Méry, que esteve aqui em 1º de junho de 1963, e de outro francês ainda mais célebre, o filósofo Jean Paul Sartre, que chegou ao Recife em agosto de 1960. Na palestra que fez na Faculdade de Filosofia, o tradutor contratado não apareceu. A tarefa acabou sendo cumprida por um paraibano que falava francês e inglês e ocupava o posto federal mais importante no Nordeste - Celso Furtado, superintendente da Sudene. No final da palestra, Furtado quebrou outro galho para o filósofo e para os organizadores da palestra: deu carona, dirigindo seu próprio carro, para Sartre, até o hotel em que ele estava hospedado. Assim como o tradutor, o motorista contratado também não aparecera.

Na área audiovisual, o Nordeste chegara às residências dos EUA em 13 de junho de 1961, como tema do documentário The Troubled Land("Terra Conturbada"), produzido e dirigido por Helen Jean Rogers. Kennedy e Celso Furtado assistiram ao documentário na Casa Branca. O programa mostrava o drama dos sem-terra nordestinos. Tocou o coração dos norte-americanos. Um casal de Minessota, Long Island, telefonou à emissora oferecendo-se para comprar terra para uma família daqui. Em Chicago um telespectador procurou 25 amigos e pediu que mandassem roupas para os camponeses. Não há notícia se as roupas chegaram e se a terra foi comprada. O documentário nunca passou no Brasil; o presidente Jânio Quadros considerou que ele era ofensivo ao país.

Da mesma forma que os norte-americanos vinham para cá, ia gente daqui para lá. Em caravanas, muitas vezes. Como a de jornalistas (14 de Pernambuco e um do Ceará), que "sob os auspícios do Departamento de Estado e da Agência de Informações (Usis)" dos EUA (matéria do Diario em 7 de junho de 1963), foram conhecer o American way of life. O adido cultural do consulado norte-americano no Recife, Douglas Elleby, teve o privilégio de, ao ser transferido para outro país, ser alvo de um abaixo-assinado de jornalistas pernambucanos pedindo que ele ficasse.

O futebol tambémse fez presente nesta tendência. O Sport Club do Recife participou de um torneio internacional nos EUA - junho/julho de 1963 - como representante do Brasil, enfrentando equipes do México, Alemanha, França, Espanha e México. Recebeu por jogo US$ 1.500, um cachê que nunca até então houvera recebido. O dinheiro dava para pagar jogadores, técnico e até - o "até" aqui foi usado em matéria do Diario sobre o assunto, em 11 de junho de 1963 - o massagista. (Para quem gosta do jogo, seja ele futebol ou soccer: O Sport ficou em 4º lugar).

No fluxo Nordeste-EUA, uma das atividades de propaganda do governo norte-americano era levar pessoas da região para viver durante um ou dois meses com famílias de lá. Um dos participantes foi Dinaldo Bizarro, na época estudante de agronomia da UFRPE. Ficou em Pigeon, estado de Michigan. Se fosse possível usar a palavra "grotão" em relação a algum município dos EUA, Pigeon seria um deles. No último censo, de 2000, tinha 1.207 habitantes e 496 casas. Ao retornar de lá, Dinaldo avisoulogo: "Não fui teleguiado. Tive oportunidade de conhecer e visitar os lugares que quis". E, maravilhado: "O nível de vida das pessoas, apesar de pertencerem à classe média, era altíssimo. A maioria possuía carros do ano e em geral duas casas". Outro participante do programa foi Marcelo Jorge de Castro Silveira, que ficou em Palmyra (3.145 habitantes, com 1.330 casas, no censo de 2000), na Pennsylvannia. E Mario Romanguera, que foi para Wooster (24.000 habitantes, 10.040 residências), em Ohio.

Os governadores da região tinham tratamento VIP da Casa Branca - como nunca tiveram antes e como certamente nunca mais virão a ter. Aluízio Alves (RN) e Virgílio Távora (CE) quando queriam passar o pires em busca de recursos para seus estados não iam para Brasília; iam para Washington. Pela Pan Am e partindo do Recife.

A presença dos norte-americanos aqui também tinha seus lances inusitados. Como o do envio de um galinheiro portátil, inventado na Lousiana, que servia para a criação de até 100 pintos de corte. Construído com madeira rústica ou sobras de madeira, era o tipo de produto que poderia muito bem ter serventia para o Nordeste, acreditavam os americanos. Não vingou.

Hoje o presidente Kennedy é nome de rua ou avenida em todas as capitais do Nordeste. Em Pernambuco há "avenida Presidente Kennedy" no Recife, Olinda e Jaboatão. Em Fortaleza é mais do que isso: lá dá nome a um bairro. Em Natal, é nome de um instituto de Educação. Nas pequenas cidades do interior também é comum encontrar "Rua Presidente Kennedy". Até paraninfo ele foi: turma de 1963 de economia da Universidade Federal de Pernambuco o escolheu como tal. A solenidade foi em fevereiro de 1964, no Recife. O embaixador Lincoln Gordon o representou. Os estudantes responsáveis pela indicação ganharam viagem aos EUA e foram recebidos pelo senador Robert Kennedy., em Washington (em junho daquele ano).

Era uma vez no Brasil
O dia em que Lincoln Gordon escapou de ser enterrado vivo

O embaixador Lincoln Gordon foi fazer uma palestra em Fortaleza, no Ceará. Dias antes o líder do movimento sindical de esquerda, José Beleza, procurou o governador Virgílio Távora. Queria autorização da Secretaria de Polícia para fazer uma passeata e o enterro simbólico do embaixador. Virgílio, que fora eleito com apoio da Aliança para o Progresso, reagiu:

- Não me consta que o embaixador Lincoln Gordon haja morrido.

- É um ato simbólico, governador, para mostrar nosso repúdio à política dos Estado Unidos - explicou José Beleza.

E Virgílio, encerrando a conversa:

- Doutor, no meu Estado só se enterram os mortos.

Não houve passeata nem enterro simbólico e Lincoln Gordon fez sua palestra sem problemas.

O avesso do avesso

Em 1965, quando Lincoln Gordon continuava embaixador, Virgílio Távora governador, Arraes fora deposto e o Brasil tornara-se o mais fiel aliado dos EUA nas Américas, o jornalista Carlos Heitor Cony notou que havia algo errado no nome do nosso país. A submissão do Brasil era tanta na época que, disse Cony, "em vez de Estados Unidos do Brasil" (como era o nome oficial do nosso país) deveria ser "Brasil dos Estados Unidos".

Hoje, graças a Deus, é República Federativa do Brasil.

Robert, o irmão, em Pernambuco
Não há dúvidas que foi a cena mais inusitada ocorrida no Recife nos anos 60. Do alto da capota de um caminhão, em frente ao edifício JK, no centro da cidade, um homem alto e claro fazia um discurso inflamado a favor dos pobres e dos trabalhadores rurais. O momento não era conveniente para comícios: 23 de novembro de 1965, o Brasil em plena ditadura militar. O idioma utilizado, este é que era inconveniente mesmo: puro inglês do norte dos Estados Unidos, onde o orador nascera. Bestializado, o povo embaixo procurava entender na tradução de João Gonçalves, então superintendente da Sudene, qual o verdadeiro teor do palavreado daquele estranho orador, que era ninguém menos que o senador Robert Kennedy, conhecido como "Bob", irmão do presidente John Kennedy.

Na primeira vez que estivera no Brasil, em 1963, Robert viera enviado pelo irmão presidente para pressionar o presidente João Goulart a impedir a "esquerdização" do governo. Em 1965 John Kennedy estava morto (assassinado em 23 de novembro de 1963) e João Goulart, exilado no Uruguai, deposto que fora em 31 de março de 1964. O sinal de que os tempos eram outros viu-se logo na chegada de Bob ao Recife. A polícia prendeu os universitários Henrique de Carvalho Matos (de Engenharia), Maria da Conceição Lins (Medicina) e Jorge Henrique Vadivieso Bernal (Engenharia), acusados de distribuir panfletos contendo críticas à política externa dos Estados Unidos e ao governo brasileiro - material altamente subversivo para os padrões de 1965.

Uma comitiva o procurou à noite. Queria que ele fosse a uma festa carnavalesca organizada no Clube Amante das Flores, em homenagem ao presidente Kennedy. À frente do ato estava uma norte-americana que se especializou em estudar o Carnaval pernambucano, Katarina Real. Robert não foi à festa - a data era a de dois anos da morte do irmão.

No dia seguinte, Bob viajou a Zona da Mata. Da janela da Cooperativa Mista de Trabalhadores Rurais de Carpina fez discurso defendendo "a urgente organização dos trabalhadores em sindicatos e associações"para "tornar possível a reforma agrária". Caminhou pelos canaviais ao lado do padre Crespo. Conversou com camponeses, perguntando se eles recebiam o salário mínimo, e até repreendeu o proprietário José Jaime Coutinho, por interferir na conversa: "O diálogo é comigo".

Depois veio ao Recife, onde discursou no centro da cidade e na Sudene, nesta ordem. "O progresso de toda a América Latina repousa, em larga escala, no progresso do Brasil. E o futuro do Brasil, por seu turno, depende do Nordeste, que é um país dentro de um país", afirmou na Sudene [veja trechos ao lado]. Em seguida fez palestra para estudantes da Faculdade de Filosofia, seguida de debate. Solicitou da polícia que liberasse os três estudantes presos para que eles pudessem participar do ato. Pedido negado. Mas a polícia permitiu que eles enviassem as perguntas por escrito. O sociólogo Gilberto Freyre fez o discurso de abertura. Lembrou o passado rebelde e nativista de Pernambuco e disse que o estado apoiava revolução: "Revolução no sentido em queJohn Kennedy entendia revolução". Que não tivesse, continuava Freire, nem ditadores "de feitio caudilhesco" nem "ditaduras stalinescas".

No debate, ao contrário do que se poderia pensar, as perguntas foram duras. "Como justificar a intervenção dos Estados Unidos na República Dominicana, quando, há pouco tempo, V. Exia. defendeu na ONU, entre outros postulados democráticos, o princípio da não-intervenção?", perguntou um. Bob disse que era contrário à intervenção. "Não só a esta, como a qualquer intervenção de um país nos assuntos internos de outra nação", enfatizou. Um dos estudantes presos na véspera, Jorge Henrique, que aceitara enviar pergunta por escrito a Kennedy, indagou sobre o apoio dos EUA à Guerra do Vietnã. "A Guerra do Vietnã é difícil e muito desagradável. Ninguém nos EUA simpatiza com ela", respondeu Kennedy, acrescentando, porém, que a guerra "está sendo financiada, dirigida e orientada pelo Vietnã do Norte". Um terceiro estudante esquentou o clima. Quis saber como ele via o "momento políticodo Brasil" e que conceito tinha de "eleições livres, eleições diretas e eleições indiretas". Resposta de Bob Kennedy: "Como visitante não me fica bem, não tenho mesmo autoridade para opinar sobre assuntos da alçada interna do país que visito. Afirmo-lhes, apenas, o que disse no Peru, no Chile, na Argentina e aqui: sou um defensor intransigente das instituições livres, das eleições livres, da imprensa livre, da segurança policial e dos postulados democráticos". Tirando a parte da "segurança policial", o estudante que entregasse panfletos com estas palavras seria preso por distribuir material subversivo.

O Nordeste nunca esteve distante do pensamento do presidente Kennedy. Para ele a região simbolizava e corporificava a esperança da Aliança para o Progresso inteira. Ele enviou uma missão especial para cá. Determinou fundos especiais e alimentos para auxiliar os senhores. E assegurou que nenhuma região tinha maior prioridade nos assuntos do governo. Os cortadores de cana com os quais falei hoje de manhã talvez nunca ouviram falar dele. Mas ele os conhecia. Ele conhecia os problemas e as esperanças do Nordeste do Brasil. Os gritos que se ouvem na América Latina, pelo fortalecimento das eleições livres, pelos padrões mínimos de um salário condigno - esses gritos são ecos de vozes que ouvi em meu próprio país (Trecho de discurso de Roberto Kennedy, na Sudene)


A eleição que não acabou
O presidente John Kennedy disputou uma eleição no Recife. Tão importante foi a disputa que o todo-poderoso embaixador Lincoln Gordon veio representá-lo. E defensores da candidatura dele foram recebidos no Congresso norte-americano, em Washington, pelo irmão do presidente, deputado Robert Kennedy.

A eleição, realizada em 1963, foi para paraninfo da Turma de Economia da UFPE. O adversário do presidente foi o geógrafo e escritor Manuel Correia de Andrade, que tinha em sua "chapa", como patrono, ninguém menos que Caio Prado Jr., autor do clássico Formação do Brasil Contemporâneo e proprietário da Editora Brasiliense, de São Paulo. O patrono na chapa de Kennedy era o ex-presidente Juscelino Kubitschek.

"Eu ganhei", diz ao Diario Manuel Correia, hoje um autor internacionalmente reconhecido, autor de A Terra e o homem do Nordeste, considerado um dos 100 livros mais importantes do Brasil. "Kennedy ganhou", rebate o atual ... tesoureiro da Associação Comercial de Pernambuco (ACP), Clóvis Cabral, um dos mais entusiastas defensores da candidatura do presidente e que integrou a comitiva de oito estudantes que se encontrou com Robert Kennedy em Washington. Encontramos também o laureado da turma, o agora economista Clóvis Cavalcanti, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco e professor da UFPE. Segundo ele, na primeira eleição, ganhou Manuel Correia. Depois, os defensores de Kennedy promoveram nova disputa (da qual os "eleitores" de Manuel Correia não participaram) e o presidente foi eleito.

O fato é que houve duas festas para os formandos de Economia de 1963 da UFPE. Numa, festejou-se a vitória de Manuel Correia. Caio Prado veio para a solenidade. Na outra, festejou-se a vitória de John Kennedy. Esta foi mais solene. Juscelino Kubitschek esteve presente. E o embaixador veio representar Kennedy. Clóvis Cabral guarda cópia do discurso dele.

A eleição - aparentemente inofensiva, aos olhos de hoje - é um retrato perfeito de quão profunda era a presença norte-americana em Pernambuco, de como as posições estavam aqui radicalizadas e de quanto a situação tinha repercussão no país. A ponto de um ex-presidente (JK), um embaixador e um autor e editor do porte de Caio Prado participarem das solenidades da formatura. "Era uma disputa entre direita, que apoiava Kennedy, e esquerda, que apoiava Manuel Correia", diz Clóvis Cavalcanti. O outro Clóvis, o Cabral, pró-Kennedy, afirma: "Havia na região uma sensação muito forte de que os comunistas estavam avançando"

A escolha de Kennedy como paraninfo resultou, para um grupo dos seus "eleitores", numa visita a nove cidades dos Estados Unidos, com visitas a "instituições, seu comércio e agricultura e pequenas indústrias", segundo o programa oficial.

. Clóvis, o Cabral, recebeu convite para fazer mestrado em uma universidade de lá. Compromissos com a família impediram que aceitasse. O Clóvis laureado, o Cavalcanti, fez mestrado em Yale em ... Manuel Correia era professor e exercia a diretoria de ... do governo Arraes. Seu livro, A Terra e o Homem no Nordeste, lançado naquele 1963,está na ... edição. Os três fazem restrições à política externa norte-americana de hoje. Clóvis, o Cabral, aquele pró-Kennedy, faz uma distinção pertinente: "Uma coisa é o povo americano. Outra coisa é o governo americano".

Kennedy em Sapé?
Três vezes o presidente Kennedy marcou de visitar o Brasil. Duas cancelou, e a terceira não pôde cumprir porque foi assassinado. Nas três vezes o Nordeste estava na rota que ele iria iria cumprir. Na última foi quando mais se avançou na definição do roteiro. O assunto foi tratado em reunião na Granja do Torto, da qual participaram o presidente João Goulart, o embaixador dos EUA no Brasil, Lincoln Gordon; o assessor de imprensa de Kennedy, Pierre Salinger; o general Amauri Kruel, chefe do gabinete militar, e o deputado federal Francisco de Assis Lemos, autor do relato que utilizamos aqui.

O que um deputado da Paraíba fora fazer ali? O próprio Goulart o mandara chamar. Na visita ao Brasil o presidente Kennedy queria dirigir-se aos brasileiros falando a partir de uma cidade do Nordeste, disse Goulart na reunião.

Assis Lemos conta estas histórias no livro Nordeste - O Vietnã que não houve/ Ligas Camponesas e o golpe de 64, lançado em 1996 pela Universidade Federal da Paraíba e Universidade Estadual de Londrina. Ele foi cassado pela ditadura militar. Transferiu-se para o Paraná e trabalhou na Embrapa durante o governo Fernando Henrique Cardoso.

O primeiro mensalão. Kennedy sabia?
O maior envolvimento dos Estados Unidos nos assuntos internos do Brasil aconteceu nas eleições de 1962. Milhões de dólares foram utilizados na campanha de 869 políticos brasileiros - 600 candidatos a deputado estadual, 250 a federal, 11 a senador e 8 a governador, todos eles considerados pró-Estados Unidos, hostis ao comunismo e contrários ao governo de João Goulart. Houve uma CPI para investigar o caso, mas ninguém foi punido. A organização que estava por trás de tudo, o IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática), teve o fechamento decretado em 1963, mas não restaram provas: toda sua documentação foi destruída, tornando impossível fazer a lista completa dos mensaleiros. Não se sabe quanto deles se elegeram se elegeram, mas é certo que muitos só obtiveram o mandato graças aos dólares despejados em suas campanhas.

Há controvérsias sobre a quantia gasta. Chegou a US$ 5 milhões (cerca de US$ 25 milhões, em valores de hoje), segundo o embaixador Lincoln Gordon que, na única auto-crítica dele sobre a açãonorte-americana daquele período no Brasil, reconhece que foi um erro envolver-se nas eleições locais. O ex-agente da CIA Philip Agee, que atuava na América Latina em 1962, dá outra cifra: US$ 12 milhões (US$ 60 milhões, hoje), segundo conta no livro Dentro da "Companhia" - Diário da CIA (1976)

Independente da cifra, o fato é que a maior fatia dessa dinheirama coube a candidatos do Nordeste - e Pernambuco aí ocupou o primeiro lugar. "A administração Kennedy desejava ardentemente derrotar o prefeito 'comunista' do Recife, Miguel Arraes, que concorria ao governo com uma campanha de esquerda, nacionalista e anti-americana", afirma a pesquisadora norte-americana Ruth Leacock em Requiem for revolution - The United States and Brazil, 1961-1969, lançado nos EUA em 1990 e sem tradução em português. Os Estados Unidos enviaram para Pernambuco até marqueteiros para ajudar na campanha do adversário de Arraes.

A CPI instaurada para investigar o IBAD constatou que seus recursos vinham de empresas nacionais e, na maiorparte, norte-americanas, que serviriam de fachada para recursos provenientes da CIA. Lincoln Gordon confirma em entrevista à pesquisadora Ruth Leacock que os dólares vinham mesmo da CIA. O envolvimento dos EUA nas eleições brasileiras de 1962 foi debatida em 23 de junho daquele ano, numa reunião entre o presidente John Kennedy, o assessor Richard Goodwin e Gordon [veja matéria ao lado]. Se a investigação da origem dos recursos do IBAD fosse até o fim, não se sabe onde iria parar. Talvez chegasse à própria Casa Branca, cogita Ruth Leacock.

"É muito dinheiro para uma eleição"
Funcionava assim: o presidente Kennedy apertava um botão e a conversa começava a ser gravada. O detalhe é que os seus interlocutores não sabiam disso. O próprio presidente certamente também não esperava que os seus diálogos viessem a ser divulgados no futuro. Desde 1940 os presidentes americanos tinham o hábito de gravar as conversas; Kennedy sofisticou a gravação, dotando-a de um aparato montado pelo Serviço Secreto. Parte de suas conversas pode hoje ser ouvida por qualquer pessoa; estão em CD e em texto no livro The presidential recordings, volumes 1-3, à venda nos EUA (US$ 165). A primeira gravação feita por ele teve o Brasil como tema, numa reunião em 23 de julho de 1962. Participaram, além do presidente, o seu assessor Richard Goodwin e o embaixador dos EUA no Brasil, Lincoln Gordon. Eles trataram, entre outras coisas, das eleições no Brasil, que seriam realizadas em outubro daquele ano. A comparam, em importância, às eleições italianas de 1948, quando os comunistas eram favoritos e os EUA interferiram secretamente com recursos e pessoal para impedir a vitória deles (conseguiram). Na conversa Kennedy espanta-se com o total de dólares que seriam empregados nas eleições do Brasil: "É muito dinheiro para uma eleição". Há partes originalmente suprimidas do diálogo, por serem consideradas ainda impróprias para divulgação. Veja alguns trechos abaixo:

Kennedy: Os comunistas são fortes [no Brasil]?

[Lincoln] Gordon: Como partido, são fracos.

(...)

Kennnedy: Mas agora eles ganharam boa parte da esquerda?

Gordon: Boa parte. Eles hoje ocupam postos chave e estão-se organizando...

Kennedy: Goulart lhes dá proteção?

Gordon: Ele os protege tanto no governo quanto nos sindicatos.

(...)

Kennedy: Os moderados estão muito desanimados no Brasil?

Gordon: Não a ponto de desistir. Estão muito descontentes. (...) Aluízio Alves [governador do Rio Grande do Norte] quer organizar um centro forte, levemente de esquerda. Acho que devemos apoiar totalmente a idéia.

[nesta parte, seis segundos da conversa são suprimidos, considerados "sigilosos"]

Gordon: (...) Não podemos mais ser complacentes. Creio que devemos fazer mais e provavelmente teremos de fazer mais com um pouco menos de preocupação sobre possíveis desperdícios e perda do controle [da situação]. (...) Há uma organização, o Ipes, por exemplo, [inaudível] progressista, que precisa de ajuda financeira; ela tem [inaudível] apoio e eu acho que devíamos ajudá-la.

[Richard] Goodwin: Acho que as eleições podem ser decisivas. O Linc [Gordon] as compara às eleições italianas de 1948

Kennedy: Eu sei. Quanto é que vamos investir nisso?

Gordon: Nesse caso, creio que alguns milhões de dólares.

[aqui foram cortados sete segundos de diálogo também considerados "sigilosos"]

Kennedy: É muito dinheiro. Sabe como é, aqui, numa campanha presidencial, gasta-se mais ou menos 12 [milhões de dólares]. E [com] nossos custos... já são US$ 8 milhões. É muito dinheiro para uma eleição.

Gordon: Exato.

Kennedy: (inaudível)

Kennedy [dirigindo-se a Gordon]: Bem, isso já está sendo gasto no momento? Você já está levando isso adiante?

[39 segundos "sigilosos" são suprimidos nesta parte]

(...)

Gordon: Acho que há algo que podemos fazer em relação a Goulart como parte de uma estratégia geral. Gostaria de alertar o sr. sobre a possibilidade de uma ação militar. Há uma grande probabilidade de isso acontecer".

Paulo Freire e a arte de "engordar cascavéis"
A primeira experiência de alfabetização de adultos com base no Método Paulo Freire aconteceu no Nordeste e com financiamento americano. Em Angicos, um minúsculo município do Sertão do Rio Grande do Norte (população hoje de pouco mais de 11 mil habitantes). Consistia na alfabetização em 40 horas. Começou em 18 de janeiro de 1963 e a última aula das primeiras turmas realizou-se em 2 de abril do mesmo ano. Uma idéia da importância que a experiência adquirira: foi o presidente João Goulart quem deu a última aula. Estavam lá os alunos, representantes da Aliança para o Progresso, governadores do Nordeste e mais uma penca de autoridades civis e militares.

Uma das autoridades presentes era o general Castelo Branco. Na saída, amigavelmente, ele perguntou ao secretário de educação do Rio Grande do Norte, Calazans Fernandes: "Meu jovem, você não acha que está engordando cascavéis?".

Calazans talvez não, mas os americanos da Aliança para o Progresso não concordavam com esse tipo de criatório. Pouco tempo depois, cancelaram o financiamento. Já Paulo Freire nunca se incomodou com o fato de a experiência ter sido alavancada com dinheiro dos americanos. "Se eu tenho autoridade sobre o que se vai fazer no projeto, eu não quero saber se o dinheiro vem da Aliança ou do japonês", disse ele em entrevista à TV Universitária de Natal em 21 de maio de 1993 (Ensinar e aprender com Paulo Freire, Nilcéa Lemos Pelandré, 2002). Logo em seguida à experiência de Angicos, Freire foi convidado por Goulart para coordenar a Campanha Nacional de Alfabetização. Ia sair o "vovô viu a uva" e "o boi baba o bebê", para entrar uma alfabetização que falava do cotidiano dos alunos, de casa, comida, terra, saúde, educação. O golpe de 64 acabou com a Campanha.

A reportagem do Diario encontrou em Angicos uma ex-aluna da experiência daquela época. Ela tinha sete anos e, embora o curso fosse para adultos, assistia às aulas acompanhando os pais, que eram alunos. Na aula que João Goulart deu em Angicos, Maria Eneide estava lá. O presidente perguntou seela sabia ler; ela respondeu lendo matéria de um jornal que um assessor solícito do presidente providenciara. "O que você quer ganhar?", perguntou Goulart. "Uma bolsa para carregar meus cadernos", respondeu Maria Eneide. Goulart deu ao pai dela uma quantia suficiente para comprar a bolsa e alimentos para uma semana. Maria Eneide continuou estudando, no sacrifício. Fez vestibular três vezes, até entrar no curso de Pedagogia. Hoje é professora na cidade onde aprendeu a ler; trabalha na alfabetização de adultos. Se toda cascavel fosse como Maria Eneide seria ótimo para o Nordeste ter milhares delas.

"Não é tarde para reviver um plano de desenvolvimento para o Nordeste"
A segurança pública no Nordeste é o tema da pesquisa que vem sendo desenvolvida por um dos mais conceituados brasilianistas da nova geração, o cientista político Anthony Pereira. No trabalho ele compara as políticas de seguranças do Recife, Natal e Fortaleza, de 1985 até hoje. Nascido na Califórnia (EUA), Pereira descobriu o Nordeste a partir dos estudos feitos para a sua tese de doutorado em Harvard, sobre os trabalhadores rurais - pesquisa na qual acabou estudando as Ligas Camponesas e Francisco Julião. A tese virou o livro The End of Peasantry: The Rural Labor Movement in Northeast Brazil, 1961-1988 ("O fim do campesinato: o movimento dos trabalhadores rurais no Nordeste do Brasil, 1961-1988"), lançado nos EUA em 1997. Seu livro seguinte, de 2005, aborda a repressão dos regimes militares na América Latina: Political (in) Justice: National Security Legality in Brazil and the Southern Cone ([in] Justiça política: a legalidade da segurança nacional no Brasil e no Cone Sul").

Pereira tem uma qualidade intelectual rara mesmo entre estudiosos: ele está sempre um passo adiante das análises convencionais. Dos novos pesquisadores americanos que estudam a América Latina, é um dos nomes mais brilhantes. Até a última segunda-feira ele estava no Recife, onde trabalhou como professor visitante da UFPE. Deixou a cidade para ir ensinar na Universidade de East Anglia, Inglaterra. Abaixo, sua entrevista:

NORDESTE

Diario de Pernambuco: Como surgiu o seu interesse em estudar a questão agrária no Brasil?

Anthony Pereira: Quando eu era rapaz, em Sacramento, capital da Califórnia, vi uma marcha de trabalhadores rurais chegando ao prédio onde fica a assembléia legislativa e a sede do governo estadual. Os trabalhadores, a maioria deles mexicanos e mexicanos-americanos, pertenciam ao sindicato de trabalhadores rurais. Tinham marchado muitos milhas, e eram liderados por um carismático líder, chamado César Chavez. O então governador do estado, Ronald Reagan, recusou-se a receber os trabalhadores. Ver aqueles trabalhadores rurais abriu meus olhos para a existência de uma outra Califórnia - não a da classe média dos subúrbios, onde eu vivia -, mas a Califórnia das fábricas dos campos, onde trabalhadores migrantes trabalhavam durante longas horas sob o sol e lutavam por direitos básicos como um salário decente e escolas para seus filhos. Mais tarde, como aluno da Universidade de Harvard, participei de um seminário sobre movimentos agrários na história, dado pelo historiador John Womack, e aprendi muito sobre os camponeses de Morelos [México], liderados por Emiliano Zapata, os Cristeros e outros rebeldes agrários da história do México. Fazer este seminário levou-me a querer conhecer o que havia sido o importante movimento social agrário no Brasil, e isto levou-me ao estudo das Ligas Camponesas e dos sindicatos rurais.

Diario: O senhor tem estudado questões do Nordeste há anos, morou aqui, viajou pela região... Considera que a história das relações do governo Kennedy com o Nordeste é conhecida na região?

Pereira: Não, não é. A política dos EUA naquela época era de alguma forma contraditória, uma vez que o governo queria amostras de experiências bem sucedidas para a Aliança para o Progresso, mas somente para estados de governos de centro ou de centro-direita. Havia até uma expressão - "Ilhas de sanidade administrativa" - para designar os governos com os quais o governo dos EUA aceitava trabalhar. Entre estes estados não se incluía o de Pernambuco, com Miguel Arraes, nem o Governo federal de João Goulart.

Diario: Uma série de fatores convergiu a atenção dos EUA e do Brasil para o Nordeste, neste período. Atenção que se traduziu em empréstimos, formulação de planos de desenvolvimento e inserção da questão nordestina na agenda nacional. No final, o resultado ficou longe do esperado. Podemos dizer que tivemos aí uma grande oportunidade perdida de desenvolvimento do Nordeste e da redução das desigualdades em relação ao Centro-Sul?

Pereira: Penso que sim, uma oportunidade foi perdida. O regime militar acabou com as reformas reclamadas no início dos anos 60 e o resultado foi um modelo de desenvolvimento extremamente provocador de desigualdades, concentrando renda nos estratos sociais mais altos da população e também nas regiões já mais favorecidas do país, como São Paulo. Esta forma de concentração não aconteceu em toda parte. Se você olha os Estados Unidos no mesmo período, de 1960 a 1980, você vê um quadro diferente. A desigualdade regional entre o sul e o norte declinou, em parte por causa dos pesados gastos em infraestrutura - aeroportos, rodovias, portos - e instalações militares no sul. Isso, em troca, trouxe novos investimentos e novas migrações de pessoas para o sul [ região menos desenvolvida dos EUA] e houve uma ascensão da economia do sunbelt ["Sunbelt" é como se designa nos EUA o sul mais o sudeste]. Isto quer dizer que não é tarde demais para reviver a idéia de um plano de desenvolvimento regional para o Nordeste.

Diario: Nesses tempos de mundo globalizado, que interesse existe ainda em estudar regiões periféricas como o Nordeste?

Pereira: O Nordeste tem tanto consideráveis problemas econômicos quanto um tremendo potencial econômico, talvez um potencial econômico mais forte que outras partes do Brasil. Demograficamente, é um gigante. Se fosse um país, seria o quarto maior pais da América Latina, com uma população menor somente que a do resto do Brasil, México e Colômbia. Contém a maior concentração de pobreza das Américas, mas sua economia não está estagnada - a indústria agro-exportadora em torno de Petrolina teve um crescimento acelerado, por exemplo. A região é rica em energia hidroelétrica, e se a tecnologia para a energia solar for melhorada, o Nordeste pode ficar em muito boa posição para desenvolver este setor. Por isso não sei se é exato afirmar que o Nordeste é uma região periférica.

AMÉRICA LATINA

Diario de Pernambuco: Por que até hoje a América Latina ainda está tão distante econômica e socialmente do Canadá e Estados Unidos?

Anthony Pereira: É uma questão interessante, mas ressaltar a diferença entre Brasil e Estados Unidos e Canadá é só uma forma de olhar a questão do desenvolvimento brasileiro. Os Estados Unidos e o Canadá são ex-colônias que se beneficiaram enormemente do fluxo do capital britânico e da proximidade deles com o mercado europeu nos séculos 19 e 20. Suas histórias, portanto, são muito diferentes de qualquer país da América Latina. Se você compara o Brasil com outros países ditos "emergentes" comoMéxico, Índia, África do Sul, Nigéria, Indonésia e China, o Brasil não parece tão distante. O Brasil tem um sólido registro de crescimento econômico no século 20, um dos maiores do mundo.

Diario: Em relação à persistência da pobreza...

Pereira: Voltemos à comparação com os Estados Unidos. Ao analisar diferenças, você deve começar com o tipo de colonialismo dos EUA - que teve uma colonização de agricultura familiar - comparado com o colonialismo de latifúndio que houve no Brasil e muitos outros lugares na América Latina. O colonialismo que houve nos EUA faz uma grande diferença, porque criou uma divisão igualitária de recursos, o que em conseqüência fortaleceu a estabilidade política. Estes fatores facilitaram a transição de uma sociedade agrária para uma industrial e posterior pós-industrial nos Estados Unidos. O Brasil fez a transição para uma sociedade agrária muito depois dos EUA.

Diario: Hoje que não existe mais o perigo do comunismo, qual o interesse estratégico da América Latina para os EUA?

Pereira:O fim do comunismo não mudou o fundamental nos interesses dos EUA na América Latina e no resto do mundo. Por mais de um século o interesse estratégico dos EUA tem sido dominar um mundo liberal capitalista, um sistema que é aberto a exportação do capital, produtos, serviços, idéias e pessoas dos Estados Unidos. À parte este princípio geral, a maior parte do resto da agenda americana para a América Latina é negativa. Os EUA aparecem hoje como um país que quer menos imigrantes do México; que quer estabelecer um freio à influência de Hugo Chávez na América Latina; que quer conter a guerrilha colombiana, reduzir o fluxo de drogas ilícitas da América Latina e o fim da lavagem de dinheiro do Oriente Médio na área de tríplice fronteira próxima a Foz do Iguaçu - a área onde Argentina, Paraguai e o Brasil se encontram. O que está faltando é uma agenda positiva mais extensiva.

Diario: O senhor vê uma certa paranóia na América Latina de que toda ajuda dos Estados Unidos envolve algum interesse oculto, e que esse interesse oculto beneficia apenas os Estados Unidos e é prejudicial aos outros? Ou não há paranóia em pensar assim?

Pereira: Apesar de toda pressão americana para um sistema de mercado mundial aberto ser claramente movida por interesse próprio, aí pode haver ganhos mútuos no comércio. Os EUA são o mais importante mercado exportador para o Brasil e muitos outros países. Os EUA têm hoje um déficit no comércio com o Brasil - importa do Brasil mais do que exporta. Na primeira metade de 2006, o déficit era de US$ 6 bilhões. É um estímulo tremendo à economia brasileira. Por outro lado, economias fechadas não beneficiam necessariamente a todos em um país. Durante o período de alta barreiras protecionistas no Brasil, de 1930 a 1980, o Nordeste do Brasil subsidiou o desenvolvimento industrial do sudeste. Um comércio mais livre com os Estados Unidos poderia ter sido melhor para o Nordeste do que ser forçado a comprar bens manufaturados de São Paulo.

Diario: Em livro recém-publicado nos EUA, Friendly Fire, a autora, Julia E.Sweig, diz que o "fenômeno do antiamericanismo" surgiu na América Latina. E a América Latina está agora assistindo à ressurgência da esquerda no poder. O que este fenômeno pode significar para a política externa dos Estados Unidos?

Pereira: Os benefícios das reformas neoliberais na Era do Consenso de Washington foram claramente exageradas, e as reformas tiveram resultados desapontadores, com pouco progresso na redução da pobreza e da desigualdade. O cientista político mexicano Jorge Castañeda tem recomendado que os EUA devem distinguir entre uma "esquerda má", que incluiria Fidel Castro em Cuba, Chávez na Venezuela e Evo Morales na Bolívia, que deveria ser condenada, e uma "esquerda boa", que seria a de Bachelet no Chile, Lula no Brasil, Vasquez no Uruguai com a qual poderia trabalhar. Não é claro, na análise de Castañeda, se Nestor Kirchner na Argentina e Alan Garcia no Peru pertencem à "esquerda boa". Como análise histórica, creio que é uma tese muito simplista. Parece atribuir o surgimento da "esquerda má"ao fanatismo ideológico da parte da alguns líderes. De fato, embora esta esquerda tenha surgido por causa do fracasso de um grupo de líderes, como por exemplo Sanchez de Losada na Bolívia e Andrés Perez na Venezuela, e a inabilidade das políticas deles, predominantemente políticas neoliberais. Contudo, a tese de Castañeda é um bom guia para o que a elite de planejadores dos EUA tem decidido fazer na América Latina - sustentar direitistas como Uribe na Colômbia, mas também cooperar com líderes moderados dos partidos de esquerda como Bachelet, Lula e Vazquez, por falta de opção.

Diario: Pela proximidade geográfica e interesses econômicos e políticos, os Estados Unidos e a América Latina estão condenados a uma eterna relação mútua de desconfiança?

Pereira: Desde que os Estados Unidos têm pretensão de ser uma superpotência global, suas relações com a América Latina será de alguma forma tensionada, porque os principais interesses dos EUA estão fora do hemisfério americano - na Europa, no Oriente Médio, na Ásia Central e por aí vai. A postura dos EUA como superpotência é o que tem impedido uma forma de cooperação que a gente vê na União Européia nas duas últimas décadas. Na União Européia, os países do norte europeu transferiram consideráveis recursos para desenvolvimento de infraestrutura de países do sul, como Portugal, Espanha e Grécia.

Em busca do desenvolvimento perdido
Entre o final de 1959, quando surgiu a Sudene, e março de 1964, quando houve o golpe militar, o Nordeste viveu um momento singular de sua história. Pela primeira e única vez o desenvolvimento da região esteve entre as prioridades nacionais, e com apoio internacional. Fazia-se até previsão - generosas previsões para uma região acostumada a uma secular lentidão. Caso os projetos previstos fossem implantados, em 10, 15 anos o Nordeste começaria a sair da letargia rumo ao desenvolvimento e à redução das desigualdades com o Centro-Sul.

"As possibilidades de substancial progresso econômico e social para o Nordeste pareceram mais promissoras do que em qualquer outro período neste século", escrevia em 1963 o economista Albert Hirschman, em estudo sobre a região. Cerca de 40 anos depois, outro americano estudioso das questões do Nordeste, o brasilianista Anthony Pereira encarrega-se do epitáfio daquela experiência: "Perdeu-se naquela época a oportunidade para desenvolvimento do Nordeste. O regime militar acabou comas reformas reclamadas no início dos anos 60, e o resultado foi um modelo de desenvolvimento extremamente provocador de desigualdades, concentrando renda nos estratos sociais mais altos da população e também nas regiões já mais favorecidas do país, como São Paulo".

Pela ampla variedade de forças e de projetos envolvidos, o que ocorreu no Nordeste naquele período é muito mais do que um episódio estritamente regional - é uma crônica fracassada da busca de uma região pobre pelo desenvolvimento, da qual se podem tirar ensinamentos válidos ainda hoje. Entre outras coisas, mostra que, do ponto de vista de uma região pobre, as crises têm grande potencial de transformação, enquanto a estabilidade costuma levar à estagnação.

De 1964 para cá, com uma outra alteração que não modifica o sentido da afirmação, a questão regional desapareceu da agenda brasileira - o que implica dizer que as políticas para redução das desigualdades regionais se desvaneceram juntas, fantasiadas aqui e acolá por medidas pontuais.

A Sudene, que era vinculada diretamente ao presidente, foi relocada para o ministério de sua área. O Nordeste, que na expressão de Celso Furtado havia sido incluído "no amplo contexto do desenvolvimento econômico brasileiro", retornava ao papel de figurante na política nacional. "Pacificada", a região já não despertava mais atenção. "O Brasil é uma nação, e a proposta do governo é desenvolver todas as regiões e não apenas esta ou aquela", disse o ministro Delfim Netto em 28 de julho de 1970, ao responder reivindicações de governadores da região.

Aos dados: Naqueles anos 60 a renda per capita do Nordeste correspondia a um terço da renda do sudeste e à metade da do Brasil. É praticamente o mesmo quadro que se vê hoje. "Ao cabo de 40 anos, o Nordeste mostra expressivos índices de desempenho econômico, muito embora ainda aquém das efetivas necessidades de sua vasta população", reconhece o estudo "Bases para a recriação da Sudene", elaborado por uma equipe de especialistas, por encomenda do governo, e concluído em 2003. Mas "em termos sociais as conquistas foram muito modestas. Os indicadores sociais continuam a situar a região nos mais desfavoráveis postos, em comparação com qualquer das demais regiões do país", completa o estudo.

O rosário de desgraças vai além: concentração de renda (maior aqui do que no Brasil), concentração de domicílios abastecidos com água encanada e saneamento, baixa produtividade, maior incidência de pobres, agropecuária fragilizada, reduzido volume de exportação, índices negativos na difusão de conhecimento, desequilíbrio no acesso a serviços básicos... Acrescente-se aí um processo perigoso para o futuro da região, que os especialistas chamam de "insulamento da economia nordestina" - que significa o isolamento da economia local, na medida que (salvo alguns segmentos) demonstra baixa competividade para participar do comércio com outras regiões e internacional.

Sem política regional, e sem um órgão coordenador das necessidades e potenciais de toda a região, é pouco provável que este quadrosofra modificações substanciais. O que nos remete a uma história do tempo da Aliança para o Progresso. Na sala do seu coordenador, Teodore Moscoso, nos Estados Unidos, os visitantes eram alertados por uma placa que dizia: Please, be brief. We are 25 years later ("Por favor, seja breve. Estamos 25 anos atrasados"). Talvez seja um exercício de inutilidade, mas convém pensar quantos anos deveríamos colocar numa placa sobre o desenvolvimento do Nordeste.

Manuel Correia de Andrade
"Aquele momento do início dos anos 60 foi uma oportunidade perdida para o desenvolvimento do Nordeste. A questão Nordeste, a questão regional, desapareceu da agenda nacional. É uma discussão que infelizmente está parada há muito tempo. Agora era o momento para que estivéssemos debatendo o Nordeste, debatendo a transposição do Rio São Francisco, que é a espinha dorsal para qualquer política na região, debatendo a questão da terra, formulando propostas, debatendo a desigualdade regional, a necessidade de um planejamento regional, ... Porque sem um planejamento tudo fica muito disperso. Não funciona. É importante recriar a Sudene, mas com muito cuidado para que ela seja de fato uma entidade impulsionadora do desenvolvimento do Nordeste, e não mais um cabide de empregos"

l Geógrafo, autor de A Terra e o Homem do Nordeste

Wanderley Guilherme dos Santos
"Não é só o Nordeste, mas todo o Brasil que precisa da instabilidade produtiva. Não há o que esperar da estabilidade. É a perpetuação da rotina. E quanto mais tradição e consenso, como é o caso do Nordeste, mais danosa é a estabilidade. Veja que a mobilização existente no Nordeste no início dos anos 60 trouxe um abalo ao modo tradicional de fazer política no Brasil. Os não se rebelam no Brasil porque sabem que é sobre eles que sempre recai o custo do fracasso de alguma ação coletiva reivindicatória. Veja o caso das Ligas Camponesas - seus militantes muitas vezes pagaram o custo do fracasso com a própria vida. Mas, do ponto de vista da transformação da situação deles, para os pobres é preferível correr o risco do fracasso a deixar-se levar pelo caráter letal da estabilidade. Nesta não há saída para eles".

l Cientista político, autor de Horizonte do Desejo

Celso Furtado
"Tenho a impressão de que o Nordeste, onde eu estava na época, foi a região mais prejudicada pelo golpe. O Nordeste foi surpreendido com uma política em andamento, um movimento social, através das Ligas Camponesas, da Sudene e da Igreja Católica, que apontavam para uma outra direção. Tudo isso foi destruído. No Nordeste as conseqüências foram mais graves, pois a repressão exercida acabou com o movimento social existente, as Ligas e a Igreja Católica. A região do país que havia acumulado maior atraso social era o Nordeste. O atraso aumentou ainda mais com a mudança. O movimento de 1964 passou desapercebido em várias partes do País. Foi um golpe a mais, mesmo em São Paulo, houve atendimento de certos interesses econômicos e a região se acomodou"

l 1º superintendente da Sudene

(Entrevista publicada pelo Estado de S. Paulo, em 4 de março de 2004)

Fontes
Arquivos

JFK Library (Boston, Estados Unidos); Truman Library (Independence, Missouri - EUA); CIA (www.cia.gov); CPDOC/FGC (Rio de Janeiro) e Cehibra/Fundaj (Recife - PE)

Jornais

Diário de Pernambuco, edições entre 1961 e 1965

Livros Em português

A revolução que nunca houve, Joseph Page (Record, Rio, 1989); As quarenta horas de Angicos, Carlos Lyra (Cortez Editora, SP/ 1996);Bases para a recriação da Sudene, Grupo de trabalho interministerial para a recriação da Sudene (2003);Crise regional e planejamento (O processo de criação da Sudene), Amélia Cohn (Perspectiva, SP, 1976); Construindo o sindicalismo rural, Maria do Socorro de Abreu e Lima (Editora Universitária, UFPE, 2005); Desenvolvimento econômico regional - O Nordeste do Brasil, Stefan H. Robock (Editora Fundo de Cultura, RJ, 1964); Elegia para uma re(li)gião, Francisco de Oliveira (Paz e Terra, SP, 1993); Ensinar e aprender com Paulo Freire, Nilcéa Lemos Pelandré (Cortez Editora, SP, 2002); Francisco Julião, as Ligas e o Golpe Militar de 64, Vandeck Santiago (Comunigraf, PE /2004); Francisco Julião: Luta, paixão e morte de um agitador, Vandeck Santiago (Assembléia Legislativa, PE / 2001);Inquérito sobre a Aliança para o Progresso, Editora Brasiliense, SP, 1963; Intérpretes do Brasil - Cultura e identidade / Gunter Axt e Fernando Schüler (orgs.) / Artes e Ofícios (RS), 2004; Nordeste: O Vietnã que não houve - Ligas Camponesas e o golpe de 64, Francisco de Assis Lemos (UEL/UFPB, 1996); O Brasil dos brasilianistas (1945-2000), Rubens Antonio Barbosa, Marshall C. Eakin e Paulo Roberto de Almeida (Orgs.) / Paz e Terra (RJ), 2002; O processo revolucionário no Nordeste (em A Dialética do desenvolvimento), Celso Furtado (Fundo de Cultura, 1964); Polícia e Política: Relações Estados Unidos-América Latina,Martha K. Huggins (Cortez Editora, SP/1998); O governo João Goulart, Moniz Bandeira (UNB/Edit. Revan, 2001); Política econômica na América Latina, Albert Hirschman (Fundo de Cultura, RJ, 1963); Quatro anos de governo (1959-1963) - Cid Sampaio (Recife, 1963); Relações Brasil-EUA no contexto da globalização, Moniz Bandeira (Senac, SP, 1997); Sete palmos de terra e um caixão, Josué de Castro (Brasiliense, SP / 1965)

Em inglês

Cold warriors & coup d'etat, W. Michael Weis (University of New Mexico, USA / 1993); Latin America in the Era of the cuban revolution, Thomas C. Wright (Praeger Publisher, USA, 2001); Requiem for revolution, Ruth Leacock (Kent State University Press, USA, 1990); The alliance that lost its way, Jerome Levinson e Juan de Onis (Chicago Quadrangle Books, USA, 1970); The americanization of Brazil, Gerald K. Haines (SR Books, USA / 1989); The end of the peasantry - The rural labor movement in Northeast Brazil, 1961-1988, Anthony W. Pereira (University of Pittsburg Press, USA, 1997); The most dangerous area in the world - John F. Kennedy confronts communist revolution in Latin America, Stephen Rabe (The university of North Carolina Press, USA - 1999); The politics of foreign aid, Riordan Roett (Vanderbilt University Press, USA, 1972); United States penetration of Brazil - Jan K. Black (University of Pennsylvania Press, USA - 1977)

Trabalhos acadêmicos

Comunicação e libertação - Relato analítico da trajetória de um militante junto a camponeses em Pernambuco (1955-1990), Paulo Crespo (Dissertação de Mestrado; UFPE, 2003)

Moradores de engenho, Christine Paulette Yves Rufino Dabat (Tese de Doutorado; FPE, 2003)

Relações Brasil-Estados Unidos: O caso da Aliança Para o Progresso no Ceará, Ilza Maria Grangeiro Xavier Lage (UFPE/UFCE, 2001)

(FIM).