Em algum lugar do passado
enviada por Luis Nassif
A casa fica em uma rua tranqüila, em Belém. Tem um jardim florido na frente. A primeira sala é
relativamente grande. Passando por ela, chega-se a uma espécie de escritório encravado no meio do
corredor. Nas paredes, quadros antigos, pinturas, peças de tempos imemoriais.
Perto das duas da tarde e a velha senhora coloca um CD no aparelho, senta-se na cadeira de balanço
e fecha os olhos, curtindo a música. Marca o compasso com os dedos e repete, com sua voz de
octogenária, os trinados que o disco preservou de sua voz mais moça.
E aí o pensamento mergulha pelas dobras do tempo e a leva aos anos 30, aos seus vinte anos, mais
especificamente ao Teatro Municipal do Rio de Janeiro quando viveu Tosca, a cantora apaixonada da
ópera de Puccini, que mata o chefe da polícia que a quer possuir e se lança, depois, das muralhas
do castelo. Na orquestra, o maestro Eduardo Guarnieri, pai do teatrólogo Gianfrancesco Guarnieri,
a guiando com os olhos, arrancando da jovem cantora o ritmo, a pulsação.
Quando terminou a ópera, o palco estava coalhado de flores. O público atirava buquês sobre a
cantora. No dia seguinte, recebeu uma carroça coberta de guirlandas. A crítica reconheceu como o
maior sucesso de uma primeira apresentação, em toda a história do Municipal. E, depois, o convite
para interpretar a ópera “Lohengrin”, de Wagner.
Dois meses depois, a jovem cantora voltou para sua Belém do Pará, e de lá não mais saiu, a não ser
para apresentações esporádicas pelo Brasil. Ajudou a formar a tradição lírica paraense, tornou-se
a maior intérprete de Waldemar Henrique, mas não quis seguir carreira. Nem dona Mariquinha, mãe de
Bidu Sayão, conseguiu convencê-la a tentar a carreira internacional.
Hoje em dia, sua música é difundida através de CDs e LPs organizados pela Secretaria da Cultura do
Estado. É de arrasar coração até de economista da PUC Rio. De seus amigos, poucos restaram. Ainda
hoje ela conversa freqüentemente com Oriano de Almeida, um sergipano que nos anos 40 chegou a ser
considerado dos três maiores intérpretes de Chopin no mundo, e que curte uma aposentadoria anônima
em seu estado.
Qual o mistério de Maria Helena? Aos 20 anos, filha de um ex-presidente da província do Pará, e de
dona Irene Squiroz, espanhola belíssima, que cantava muito bem, conhecia Debussy e Fauré. Desceu
ao Rio para passar dois meses aprimorando o repertório. Matriculou-se no conservatório, ao lado de
outras cantoras que fizeram nome na época, como Violeta Coelho Netto. Estava em um ensaio quando
um assistente de Gabrielle Benzanzoni a ouviu cantar e, imediatamente, informou a mestra.
Benzanzoni tinha fama internacional. Italiana, dona de uma raríssima voz de contralto, casara-se
com o empresário português Henrique Lage e radicara-se no Rio de Janeiro. Ao ouvir Maria Helena,
decidiu que teria o papel principal na Tosca. Orientou a jovem soprano, cuidou com esmero dos
detalhes do figurino.
Terminada a apresentação, Maria Helena decidiu voltar a Belém. Não se deu com a ópera. A cena em
que precisava matar o chefe da polícia a traumatizou. Afinal ela, ali, com uma faca de peixeiro,
matando seu melhor amigo do elenco, o barítono Silvio Vieira. E o que dizer de beijar em público,
logo ela que mal tinha completado vinte anos?
Na canção, Maria Helena colocou a maior carga de emoção que qualquer outra cantora lírica
brasileira. Mas na ópera era outra coisa. Ela tinha que passar a emoção de terceiros, do
personagem que vivia. Além disso, amava tanto a música que não concebia viver dela.
E tinha a mãe, que serviu de referência para toda sua carreira. Tanto que, no dia em que a mãe
morreu, ela se viu rasgando um a um os recortes de jornal que falavam de sua carreira. E tinha o
marido, o médico Elyson Cardoso, filho de um ex-presidente de Sergipe, pianista notável, capaz de
ficar horas improvisando a quatro mãos com Francisco Mignone. Quando o marido a viu rasgando o
arquivo, perguntou a razão. Ela respondeu que a mãe tinha morrido. E ele, com voz triste: “E eu?”.
E a paixão pelo marido a manteve no canto e na sua Belém, o médico que detestava a política, e que
era bonito de fechar o comércio. “Aos sábados, eu dizia, para ele não ficar muito faceiro”,
relembra Maria Helena.
Hoje em dia, Maria Helena diz que nada a prende mais à vida, a não ser as pessoas, as flores do
seu jardim, a velha e fiel empregada, tentando lembrar passagens do passado. Outro dia,
recordou-se por inteiro de uma canção que tentava relembrar a tempos. Lembrou tudo de uma vez e
temeu ser um aviso da morte. Era de Júlio Diniz, e dizia “olho com nuvens dourados pelos ares”.
Dois meses depois do encontro, relatado nessa crônica, dona Maria Helena morreu.
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