Tribuna da Imprensa (16/10/06)
Argemiro Ferreira
O delegado, o procurador e o jornalismo da Globo
O que sugere a reportagem da revista "CartaCapital", nas bancas desde o
fim de semana, é que toda a trama urdida para, como um guindaste,
levantar a votação do candidato Geraldo Alckmin e levá-lo ao segundo
turno, deveu-se a um delegado da Polícia Federal, Edmilson Pereira
Bruno, e a um procurador da República, Mário Lúcio Avelar - em conluio
com um setor da mídia, em especial o império Globo.
Segundo o relato, antes mesmo de chegarem à sede da Polícia Federal em
São Paulo os dois homens ligados ao PT, com os quais teria sido
encontrada a soma de R$1,7 milhão, já estava lá a perua da Rede Globo.
E ao chegar, estacionou entre outras duas equipes tucanas de televisão
- as do marketing político das campanhas de Geraldo Alckmin e do
candidato a governador José Serra, primeiras a chegar.
Avelar, apontado como comandante da operação, já tivera papel igual ao
divulgar no início de 2002 as fotos do dinheiro apreendido na firma
Lunus, do marido de Roseana Sarney (o que detonara a candidatura
presidencial dela pelo PFL no momento em que, nas pesquisas,
ultrapassava a do tucano Serra na preferência para confrontar Lula).
Mas a ficha do afoito Avelar não fica nisso.
Estranha conduta de autoridades
O procurador já tinha pisado na bola mais duas vezes. Em Tocantins,
fora afastado pelo procurador-geral Geraldo Brindeiro no final de 2002,
por ter indiciado políticos com mandato sem ter autoridade para tal
(pois isso cabe ao procurador-geral). E em Mato Grosso, seu posto
seguinte, tinha sido o desastrado comandante jurídico da operação
Curupira, da Polícia Federal, contra funcionários do Ibama e
madeireiros.
Essa operação Curupira incluíra, entre as 93 pessoas presas, o diretor
de florestas do Ibama, Antônio Carlos Hummel. Levado, algemado, para
Cuiabá, ele passara quatro noites na cadeia antes de ser, afinal,
libertado. Como lembrou "CartaCapital", o próprio Avelar, depois de
acompanhar o depoimento oficial de Hummel, acabou por reconhecer que
ele não devia sequer ter sido indiciado.
Com antecedentes como esses três casos - de Roseana, no qual o dinheiro
foi afinal devolvido, após a conclusão de que nada ocorrera de ilegal;
dos políticos indiciados ilegalmente em Tocantins; e da prisão
arbitrária do diretor do Ibama, totalmente inocente - o mesmo
procurador Avelar, responsável pelo procedimento jurídico no caso do
dossiê, pediu a prisão preventiva de Freud Godoy, segurança do
presidente Lula.
Isso só não levou a nova arbitrariedade porque o pedido dele foi
rejeitado pelo juiz Marcos Alves Tavares - que estranhou, entre outras
coisas, o contra-senso de ser divulgado o pedido na imprensa antes de
sua análise pelo juízo. Depois, como é sabido, a Polícia Federal e o
Ministério Público inocentaram Godoy, levando jornais e jornalistas com
um mínimo de dignidade a pedir desculpas publicamente.
Mentindo para agradar à fonte
É relevante a esta altura a suspeita de que, sob a influência de
figurões da política, generalizam-se práticas duvidosas entre
procuradores e policiais, tirando proveito do período eleitoral. Para
atender a inclinações partidárias, servir a grupos políticos ou até
mesmo buscar vantagens pessoais, gente sem escrúpulos pode não resistir
à tentação de tornar rotina essa atividade nova e na certa altamente
lucrativa.
"CartaCapital" chama atenção para detalhe insólito. Ainda que o "caso
do dossiê" esteja nas primeiras páginas há um mês, a Polícia Federal e
o procurador ainda não sabem que crime (ou crimes) atribuir aos
suspeitos presos. O dinheiro que destroçou a candidatura de Roseana foi
devolvido, após o estrago, por não haver crime. Sobre o de agora Avelar
insinua que pode ser dinheiro público mas ainda não apareceu prova.
Isso pode acontecer, claro, mas parece óbvio que as ações do delegado e
do procurador foram no mínimo precipitadas. Como também a conduta da
mídia. Logo no início "O Globo" comparou o caso a Watergate - onde
havia o fato concreto da invasão do escritório do Partido Democrata e,
mesmo assim, só veio a renúncia em razão de fatos posteriores graves,
no esforço oficial para obstruir a investigação.
O prontuário das organizações Globo, que já tinha as fraudes de 82
(Proconsult) e 89 (debate editado), engordou agora com a figura
patética do delegado Bruno. Ao entregar as fotos ele mandou a mídia
mentir para protegê-lo, dizendo que elas tinham sido roubadas. Depois
mudou de idéia e assumiu tudo. Resultado da lambança: num texto "O
Globo" assumiu a mentira como verdade, em outro deu versão diferente.
Receita promíscua de reportagem
No caso atual, pode-se até imaginar uma confraternização promíscua à
porta da sede da Polícia Federal naquele 15 de setembro, com as equipes
de jornalismo da Globo e as do marketing político tucano, de
responsabilidade da produtora GW, cujos donos, por coincidência, são
dois ex-jornalistas da mesma Globo, Luiz Gonzales (o G) e Woile
Guimarães (o W).
O diretor de jornalismo da rede Globo, Ali Kamel, pode até achar que ao
deixar de responder às 10 perguntas da revista varreu a sujeira para
debaixo do debate. Mas as perguntas continuarão a perseguir o
jornalismo do império Globo. Porta-voz oficioso da ditadura e
colaborador da censura, como atestou uma vez o próprio ministro Armando
Falcão, expõe hoje sua incompatibilidade com as regras democráticas.
Kamel fala em isenção, mas é acusado de ter encomendado o sumiço da
fita de áudio na qual o delegado Bruno cita a Globo. Desapareceu ainda
a fita, editada, sobre Abel Pereira, empresário ligado ao PSDB que
supostamente tentava comprar o mesmo dossiê. Enfim, que diabo de
jornalismo é esse, que suprime o que compromete um partido e escancara
na manchete o que atinge o outro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário